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“Primeiro passo é despoluir os rios”

Especialista diz que melhor solução para crise hídrica é tratar córregos: "Água temos"

Marina Rossi
Malu Ribeiro, em São Paulo.
Malu Ribeiro, em São Paulo.Rafael Hupsel

Os rios de São Paulo reduziram de 75% para 44% o número de pontos de coleta de água com qualidade classificada como ruim ou péssima. Essa é uma das conclusões de um levantamento sobre a condição de água de 111 rios do país, tendo São Paulo e o Rio de Janeiro como foco principal. O estudo, realizado pela Fundação SOS Mata Atlântica e divulgado na semana passada, traz, entre outras informações, essa boa notícia referente a São Paulo. Mas isso é o resultado de uma má realidade: a estiagem.

Malu Ribeiro, coordenadora da rede de águas da Fundação, explica que a chuva também é responsável por levar a poluição das cidades para os rios. “Quando chove, o impacto da mancha urbana leva para os rios uma carga de poluição muito maior do que o esgoto em si”, explica. Como o Estado atravessou, no ano passado, um período de grande estiagem, a poluição acabou por não chegar até os rios.

No mesmo dia da divulgação do levantamento, o Governo do Estado de São Paulo anunciou que desistiu de usar parte da água poluída da represa Billings para abastecer a Grande São Paulo. A represa, localizada na zona sul da cidade, estava sendo cogitada para amenizar a crise hídrica. Sua água, porém, está poluída e o Governo justificou a desistência do projeto pelo alto custo para tratar e despoluir essa água. De acordo com Malu, porém, despoluir os rios deveria ser a prioridade número 1 para enfrentar o grave problema de desabastecimento no Estado. "Água tem", diz.

Na sede da Fundação, Malu, que mora em Itu, uma das primeiras cidades a sofrer com a falta d'água no Estado, explica os pormenores dessa crise. "Passei mais de 15 dias sem água em casa. Paramos de comer verduras, dar descarga na privada e lavar a louça. Nossos copos tinham nomes para usarmos pelo dia todo", diz. "Tomei banho de bacia e cheguei a pagar 1.000 reais por um caminhão pipa".

Pergunta. Qual é o cenário dessa crise hídrica nesse momento?Resposta. A situação não está melhorando nem um pouco. Não tivemos que enfrentar um rodízio mais rigoroso de cinco dias, mas o fato é que um rodízio nós já estamos enfrentando. A água não está chegando nas torneiras. As pessoas estão alarmadas, e, de certa forma conscientes e economizando água. Isso foi o ato positivo da crise. Onde eu moro, em Itu, uma cidade fundada em 1610, a rede de água é muito antiga e, há uns dez anos, o município foi sucateando o serviço de água, criando na cabeça das pessoas que o serviço era ruim. Mais ou menos como está acontecendo com a Sabesp hoje, onde há uma pseudo privatização, e isso é um alerta: estamos a um passo da privatização da água, o que não é permitido pela legislação brasileira.

P. O que essa privatização da água significa para a gente na prática?

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R. O ex-prefeito de Itu, Herculano Passos, foi sucateando e oferecendo um serviço irregular para a população que, por sua vez, passou a fazer uma campanha informal de que o serviço era ruim. Então quando ele lançou a ideia de privatizar o serviço de água na cidade, a população não foi contra. Porque ela vinha de uma massificação de uma informação de que o serviço é ruim, não se constrói reservatório, exatamente como vem acontecendo com a Sabesp, que dizem que não se manifesta, que é ruim, privatizou já metade do capital... Esse sucateamento para justificar a privatização foi uma orquestra muito bem regida de médio e longo prazo. E é evidente que a iniciativa privada não cumpre um preceito internacional. O acesso à água é um direito humano. Quando você privatiza um bem essencial, não há garantia de que todos serão atendidos igualitariamente.

P. O que deveria ter sido feito e não foi e o que deve ser feito diante da situação atual?

R. Primeiro deveria ter se entendido a gestão da água como essencial e estratégica. Isso não foi feito. A nossa cultura é uma cultura de abundância, então temos muita água. Se há dois anos você dissesse aqui em São Paulo, que é chamada de 'a terra da garoa', que você tinha que fechar o chuveiro enquanto tomava banho, isso seria surreal. Além disso, culturalmente, o flagelo da seca no Brasil está em obras de arte, em canções populares, literatura de cordel, está no nosso DNA como se fosse normal.

Não ter prestado atenção nos ecossistemas e nos biomas brasileiros foi o grande erro. Não ter ouvido a ciência e os técnicos e ONGS e terem permitido a flexibilização da legislação ambiental, destruída com a mudança do código florestal, foi outro erro.

P. E agora?

R. Agora para reverter esse gatilho vai ser muito difícil. Vai depender de um grande chacoalhão na população para acordar e entender que não adianta rezar para São Pedro.

P. E além do trabalho de conscientização da população, o que o poder público terá de fazer?

R. Primeiro despoluir os rios. Não estamos com falta d’água porque estamos no semiárido. Estamos com falta d’água porque nós poluímos, deixamos os rios indisponíveis. Temos tecnologia. Se a Sabesp, ao invés de fazer mega obras, como foi a primeira fase do projeto de despoluição do Tietê, olhar para os pequenos córregos da cidade, para as nascentes urbanas e para a gestão da água na bacia, coisa que não foi feita até agora...

P. Você quer dizer que água tem?

R. Água tem. Nós precisamos buscar. Precisamos aprender a conviver com a água que nós temos.

P. A falta de haver um histórico de escassez de água parecida com a que vivemos hoje aqui em São Paulo pode justificar a ausência de uma atitude mais ágil por parte do poder público?  O Governo tem batido na tecla de que 'é a pior seca da história'...

R. Nós temos histórico de escassez de água em São Paulo e no Rio de Janeiro desde os tempos do Império. A floresta da Tijuca foi reflorestada e feita por ordem do Imperador porque o Rio de Janeiro estava sem água. O sistema Cantareira foi feito por engenheiros ingleses, pela então Companhia Cantareira e já no século retrasado, São Paulo enfrentava uma crise de falta d’água. Se a gente tivesse aprendido com a história, nós não teríamos problema. O nosso problema é que a nossa cultura é imediatista. O que o Estado precisa fazer são campanhas educativas permanentes. Deixar de investir em propaganda política e investir em propaganda de utilidade pública.

P. E essa política da Sabesp de premiar os maiores consumidores de água?

R. É um absurdo. É um escândalo. Isso tem que ser revisto. É lógico que quando ela praticou isso, era uma empresa que estava naquela lógica, do investimento, do capital misto... Hoje isso não cabe mais no mundo, é insustentável você privilegiar quem consome demais, quem desperdiça. Mas no momento em que a Sabesp fez isso, foi o que a colocou de uma forma diferenciada no cenário brasileiro dentre as outras companhias de saneamento.

P. Mas explorando um recurso natural....

R. Ela pensa com uma lógica empresarial. Ela é uma companhia que vende água, então o que ela queria fazer? Vender água. E ela tinha água para vender. Só que a demanda acabou crescendo seis vezes mais do que a água que ela tinha. Como companhia, ela estava fazendo o que ela foi feita para fazer. Quem não deveria ter permitido essa política era o Estado. Se a Sabesp é uma companhia pública estatal, deveria seguir um plano de bacia...

P. E o rodízio?

R. Se a gente fosse ficar cinco dias de rodízio [uma hipótese levantada anteriormente pelo Governo], tem gente cuja água não chegará nunca.

P. Por que?

R. Porque até religar, romper rede... e quando você fica sabendo que vai ter um rodízio, o que você faz? Guarda água. Um rodízio eficiente é cortar na indústria, reduzir o comércio, parar de premiar quem consome e autuar quem gasta mais. Então você faz um rodízio, mas não com a população, que é a ponta do consumo.

P. E dá para fazer alguma previsão para os próximos meses?

R. Não. Mas agora que está chovendo é a hora de realizar a restauração florestal nos mananciais. A gente precisa fazer isso para ontem ao redor dos rios Cantareira e Paraíba do Sul. E temos provas de que em três anos você recupera o manancial se você reflorestar.

P. Quando esse reflorestamento começará a ser feito?

R. Já está começando. O plantio ainda não começou, mas a adequação do solo, o mapeamento das propriedades, o levantamento de documentos, isso já começou.

P. E qual é a previsão para começar o plantio?

R. Em abril. Porque em seguida começa a seca e aí já não dá mais para plantar. Já está atrasado. Mas como as chuvas atrasaram, ainda dá pra fazer. Mas se demorar, não vai dar mais pra fazer. Mas uma falsa leitura da população é que isso será a longo prazo. Não é. É mais rápido que muitas alternativas.

P. Mais rápido quanto?

R. Três anos.

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