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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Desvalorizações argentinas

As desvalorizações da palavra terão efeitos que sobreviverão por anos na política do país

Martín Caparrós

Meus compatriotas perguntam com frequência —a qualquer pessoa que saia do país, a qualquer uma que entre— “como nos veem lá fora”. A “imagem da Argentina no exterior” é uma das obsessões nacionais. Por isso, eles não gostam que lhes digam a verdade: que, em geral, ninguém olha para nós. A não ser, faltava algo mais, em semanas como esta.

Nesta semana, a morte do promotor Nisman atraiu a crônica vermelha e negra dos jornais do mundo com suas idas e vindas, seus tropeços; quando se dissipar a névoa do interesse mórbido policial-politiqueiro, quando tiver sido assimilado o choque bruto da volta da morte política ao cenário nacional, começarão a ser esclarecidos outros efeitos de médio prazo. As desvalorizações, por exemplo.

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A Argentina, um país que “se” desvalorizou tanto, acabou de sancionar nestes dias duas desvalorizações decisivas. Uma é a desvalorização da palavra do Estado. Em janeiro de 2007 a então presidenta Cristina Fernández decidiu pela intervenção no Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (INDEC). A inflação crescia mais e mais, e a resposta oficial foi matar o mensageiro: puseram um camicase à frente do INDEC e o fizeram produzir cifras visivelmente falsas, ridículas, que não enganavam ninguém. Províncias, parlamentos, consultorias ocuparam o vazio e começaram a oferecer números utilizáveis. O Estado suicida renunciava a seu monopólio sobre esses dados que definem a economia do país – inflação, emprego, pobreza, produção – e, sobretudo, deixava clara sua vontade de mentir. A partir daí, o Estado argentino passou a ser visto mais e mais como uma fábrica de ficções – o relato; a tendência teve sua apoteose nestes dias, em que ninguém acredita nas versões oficiais sobre a morte de Alberto Nisman. E não só por serem confusas, contraditórias; se, por algum milagre, a justiça ou a polícia mostrassem um vídeo providencial que tivesse registrado a agonia passo a passo, haveria uma enorme proporção de argentinos que continuaria se perguntando como o falsificaram.

Ao mesmo tempo, acabou de se desvalorizar a palavra presidencial. A senhora Fernández, tão viciada nas transmissões em rede nacional, se manteve em silêncio toda a semana que se seguiu à morte de seu acusador. Mas escreveu duas cartas, publicadas em sua página no Facebook. Se sua autora não fosse a presidenta poderiam ser usadas como exemplo escolar da degradação da escritura ao sul do sul, e das complicações e asperezas de uma mente confusa. Mas é. Supõe-se que a palavra de um presidente deva ter peso: não pela pessoa, mas pelo cargo. Para um presidente, sua palavra é uma ferramenta de poder: seus cidadãos têm de estar convencidos de que, se diz alguma coisa, isso que diz tem raízes, razões, força, efeitos. Se fala sem noção alguma, se escreve a primeira coisa que lhe passa pelos dedos, se não se deixa assessorar, se comenta a realidade de seu país como se não fosse sua responsabilidade, se critica a torto e direito como se fosse oposição, a palavra presidencial vai se degradando até se transformar em motivo de piadas ruins ou, no melhor dos casos, em ruído de fundo. Embora consiga, por alguns momentos, alcançar o ápice na retórica; um exemplo é uma dessas frases (in) felizes que durarão na memória como síntese de algo que muitos prefeririam esquecer: “Não tenho provas, mas não tenho dúvidas”.

As desvalorizações da palavra – do Estado, da presidência – terão efeitos que resvalarão para muito além deste período, em anos e anos de política argentina. Efeitos que poderiam até ser interessantes: os políticos que quiserem recuperar o peso dessas palavras terão de fazer esforços enormes – de sinceridade, de verossimilitude, de inspiração – para conseguir isso. Ou talvez nunca consigam – a Argentina é, no final das contas, o país do Quesevãotodos – e então a história pode ser ainda mais interessante.

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