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A carta de Cristina Fernández de Kirchner sobre o ‘caso Nisman’

Texto na íntegra postado pela presidenta argentina no seu Facebook, sob o título “Os espiões que não eram espiões. As perguntas que se transformam em certezas. O suicídio (que estou convencida) não foi suicídio”

Cristina Fernández de Kirchner.
Cristina Fernández de Kirchner.Michele Tantussi (Bloomberg)

Ontem, os argentinos conheceram a denúncia completa do Promotor Nisman. Sempre se disse que o idioma inglês, ao contrário do espanhol, não tem tanta diversidade de palavras para definir objetos, situações, adjetivos, etc. E é verdade. Mas devo reconhecer que nesta oportunidade, ao ver e ler no dia de hoje a capa do jornal portenho Buenos Aires Herald, a economia de vocabulário tem também suas vantagens.

Realmente, o citado matutino expressa sua opinião sobre a denúncia do Promotor Nisman com precisão cirúrgica, ou talvez linguística. Sobre um fac-símile do relatório, duas palavras inquestionáveis: “Nothing new” (“Nada novo.”)

Como se isso não bastasse, acrescenta como subtítulo: “O relatório de Nisman fracassa em avivar as chamas de conspiração.” Fracasso e conspiração, duas palavras que se tivessem sido usadas por esta Presidenta seriam objetos das piores críticas. Acho que ninguém poderá acusar o jornal de língua inglesa de ser um meio próximo ou cooptado pelo Governo.

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Poderia mencionar também a análise de Horacio Verbitsky: Alerta vermelho, publicado em Página 12 também nesta data, ou o de Raúl Kollmann, no mesmo jornal, página 2 e 3... mas já sabemos, não faltariam aqueles que os impugnariam apesar de que os dois jornalistas analisaram e seguiram o caso AMIA desde o começo.

Horacio Verbitsky inclusive preside o CELS, que representa familiares de vítimas do atentado, que integram o coletivo Memória Ativa.

Bueno Aires Herald, Página 12 e outros meios (não quero ser injusta com ninguém), derrubaram como um castelo de cartas o que foi apresentado como “a denúncia do século” que demonstraria nada mais nada menos que a cumplicidade da Presidenta da República, de seu Chanceler e do Secretário Geral de La Cámpora, no encobrimento dos iranianos acusados de terem participado no atentado da AMIA há 21 anos.

Por outro lado, devo confessar que uma rápida leitura da denúncia publicada no CIJ, site da Corte Suprema de Justiça da Nação, serviu apenas para confirmar minhas piores suspeitas, e encontrar resposta a muitas das perguntas que fiz no dia 19 deste mês na ÚNICA carta que escrevi e compartilhei com o Povo argentino: AMIA. Outra vez: tragédia, confusão, mentira e perguntas.

Única com maiúscula porque naquela data comentaram sobre: “Uma nova carta de Cristina” (sic). NÃO. A carta foi só uma, difundida por diferentes sistemas da rede. Só é preciso ler o texto. Mas na Argentina, como sempre afirmo, todos os dias é preciso voltar a explicar o óbvio e simples.

Esta é a segunda e depois de, precisamente, ter conhecido finalmente o texto da denúncia, como o resto dos argentinos. Um saudável sinal democrático. A Presidenta denunciada fica sabendo ao mesmo tempo que o resto dos 40 milhões que tem a responsabilidade de representar.

Dizia que a leitura só confirmou minhas piores suspeitas. O Buenos Aires Herald tinha razão: “Nada novo.” Mas também por outras razões: “plantaram” informações falsas no relatório de Nisman. Quase uma réplica do que vi na comissão que acompanhava a investigação da causa principal. Os supostos agentes de inteligência que Nisman identificava como membros de uma “SIDE paralela” em conexão “direta” com a Presidenta, Ramón Allan Héctor Bogado e Héctor Yrimia, NUNCA pertenceram à Secretária de Inteligência, sob nenhum caráter. Pior ainda, com data de 12 de novembro de 2014, a Secretaria de Inteligência denunciou criminalmente o Sr. Bogado pelo possível delito de “tráfico de influência”, já que se apresentava como membro da inteligência aos funcionários da Aduana. A causa tramita no Tribunal Nacional Criminal e Correcional Federal nº 9.

Como se fosse pouco, dia 7 de agosto de 2013 foi recebido, na Secretaria de Inteligência, um ofício emitido pelo Tribunal Oral Criminal nº1 em uma causa pelo delito de “extorsão” no qual se questionava se Ramón Allan Bogado prestava serviços em dita dependência, e em caso afirmativo, devia comparecer ao Tribunal para declarar. Tudo que detalhei foi informado ao juiz Lijo por pedido do mesmo, por ter ficado radicada a denúncia de Nisman no tribunal de sua responsabilidade.

Tais acusações aconteceram antes de que assumissem as atuais autoridades da Secretaria e quem informou tudo isso a seus superiores foi precisamente o então Diretor Geral de Operações, Antonio Horacio Stiusso no dia 10 de novembro de 2014. A denúncia foi apresentada no dia seguinte.

Aqui é bom lembrar as declarações do Promotor Nisman realizadas no dia 14 de janeiro de 2015 no programa A dos voces do canal TN (já sabem de quem se trata). Ali houve uma pergunta sobre Stiusso: Alfano: “E o que fez Stiusso?”, Nisman responde: “Absolutamente tudo que eu pedia. Com quem coincidia muitas vezes e tinha muitas discrepâncias. Stiusso é um excelente profissional. Não tenho dúvidas, mas às vezes Stiusso, como todo homem de inteligência, vinha e me dizia ‘tenho esta prova, em tal fato participou fulano’ e a explicação que me dava quando me falava era coerente, a prova era dada por um informante da triple fronteira, ‘mas escute, para inteligência é ótima esta prova, se eu tenho que ir ao tribunal, me expulsam no ato, o que falo: que o senhor Stiusso me contou’ e discutíamos. Eu somente validava juridicamente o que podia ter validade judicial.” Textual.

Se Stiusso era quem lhe dava toda a informação que Nisman pedia e tinha, é mais do que evidente que foi o próprio Stiusso que disse a ele (ou escreveu?) que Bogado e Yrimia eram agentes de inteligência. É possível que tenha se esquecido que ele mesmo o havia denunciado em novembro do ano passado e havia iniciado uma causa judicial? E se um homem com tão boa memória tinha se esquecido, por que não consultou o departamento de Recursos Humanos?

Aqui ganha especial importância as declarações do juiz da causa, Dr. Canicoba Corral, que se referiu criticamente à participação de Stiusso, manifestando que em lugar de colaborar terminou dirigindo a investigação. Pessoalmente, acho que fazia algo mais que dirigir. Os fatos falam por si.

Se então tudo é falso. Se os agentes não são agentes. Se a Interpol, na pessoa de seu ex-chefe Ronald Noble, demoliu a acusação sobre os alertas vermelhos afirmando que Nisman estava falando coisas falsas. Se o comércio com o Irã diminui em vez de aumentar depois do Memorando. Se os que vendem grãos não são a Presidenta, nem o Chanceler, nem o Secretário-Geral de La Cámpora, mas de forma privada e sem intervenção do Estado, entre outras, as empresas: Bunge, Cargill, Nidera, Oleaginosa Moreno da empresa suíça Glencore, Aceitera General Deheza, Molinos Rio de La Plata, Vicentin, inclusive o Sr. Jorge Aranda, diretor de Clarín, que triangula operações de venda de arroz ao Irã através da empresa Molinos Libres SA. Como se verá, empresas e empresários que não são precisamente “amigos” do Governo, como gosta de adjetivar Clarín a alguns que não respondem a suas diretrizes ou convites.

Se, além disso, o Governo nunca comprou petróleo do Irã. Se, além disso, o suposto agente iraniano Jorge Alejandro Khalil aparece associado comercialmente a seu irmão Alberto Amado Edgardo Khalil, que trabalhou como Diretor Geral de Assuntos Jurídicos do Legislativo portenho, designado pelo então vice-presidente do Legislativo, Santiago de Estrada, e o então Secretário Administrativo Oscar Moscariello (hoje vice-presidente do BOCA Jr. e dirigente do PRO). Depois, por Decreto, lhe foi outorgado Poder Geral Judicial para representar o Governo da Cidade de Buenos Aires, e renunciou à Direção Geral de Assuntos Jurídicos 8 dias depois do início do processo e da ordem de prisão do ex-Chefe da Polícia Metropolitana Jorge el fino Palacios por espionagem telefônica, entre outras pessoas, contra familiares de vítimas da causa AMIA.

Parece estranho que quem professa com tanto fervor a fé islâmica, o que merece meu maior respeito, e é um defensor incondicional da República Islâmica do Irã, algo completamente legal na Argentina, se associe com dirigentes de um partido manifestamente anti-iraniano. Porque é verdade que não escolhemos os parentes, mas não se pode dizer o mesmo dos sócios comerciais.

Da mesma forma chama a atenção que o Promotor Nisman, ou aqueles que o assessoravam na investigação, tenham se interessado unicamente em escutar telefonicamente Khalil quando falava com determinadas pessoas. Em qualquer parte do mundo o primeiro que faz uma investigação antiterrorista séria é determinar vínculos comerciais, de financiamento, etc.

Mais ainda, se algum juiz ou juíza aprofunda a investigação sobre este cidadão, além de escutar seu telefone, talvez se encontre com informações que nada tenham a ver com a religião, com Irã e com todas as coisas que parecem ser. Porque na Argentina, como em todos os lados, nem tudo que parece é e vice-versa.

Resumindo, a acusação de Nisman não é apenas falsa, mas constitui um verdadeiro escândalo político e jurídico. E aí está uma das questões. O Promotor Nisman não sabia que os agentes de inteligência que ele denunciava como tais, não eram. Muito menos que um deles havia sido denunciado pelo próprio Stiusso.

Tampouco investigou, fora das escutas que eram passadas por Stiusso, o cidadão Jorge Alejandro Khalil. A esta altura as perguntas que eu fazia no dia 19 vão se transformando em certezas, assim como quando se avançava na investigação da causa AMIA.

A denúncia do Promotor Nisman nunca foi, em si mesma, a verdadeira operação contra o Governo. Caía por terra sem ir muito longe. Nisman não sabia e provavelmente nunca soube disso. A verdadeira operação contra o Governo era a morte do Promotor depois de acusar a Presidente, seu Chanceler e o Secretário-Geral de La Cámpora de encobrirem os iranianos acusados pelo atentado da AMIA.

O barulho da denúncia, somado ao marco internacional pelo que aconteceu na França, mesmo sem provas nem base de sustentação, cheia de informações “plantadas”, ficava sepultada pela morte do Promotor. Claro, sob a forma de um aparente suicídio. Recurso que já foi utilizado em muitos casos tristemente célebres. Quero lembrar um em especial para retomá-lo mais à frente, o de Lourdes Di Natale que se “suicidou” jogando-se de uma varanda.

Não fazem o Promotor Nisman voltar só para denunciar algo que sabiam que não tinha sustentação e que não podia perdurar. Quando a jornalista Sandra Russo analisa o caso em Página 12 sob o título “O truque da confusão” e afirma: “Quiseram usar Nisman vivo e agora o usarão morto”, está equivocada. Foi usado vivo e depois precisavam dele morto. Triste e terrível assim.

Porque novas perguntas surgem à medida que muitas coisas vêm a público. Por que se suicidaria alguém que escreve uma mensagem em seu chat como a que escreve o promotor Nisman quando explica a um grupo fechado de amigos seu retorno intempestivo ao país? Em um tom quase épico, refletindo que vinha cumprir uma tarefa “para a qual se preparou, mas que não imaginava que chegaria em tão pouco tempo”.

Por que se suicidaria alguém que em seu chat explica que tinha pensado havia muito tempo em cumprir essa tarefa, mas que teve que adiantá-la? Talvez o fizeram vir devido ao que ocorreu na França? Ou que a tarefa tivesse sido pensada para a campanha presidencial? Ou talvez ele a tenha adiantado devido às mudanças efetuadas na Secretaria de Inteligência?

Por que se suicidaria alguém que no sábado às 18h27 enviou uma foto a um certo Wolff, membro da DAIA, de uma imagem de seu escritório onde se veem papéis e marcadores de texto, e assegurava que estava se preparando para a reunião da segunda-feira na Câmara dos Deputados? O próprio Wolff diz textualmente: “Escrevi a ele para consultá-lo sobre quem deveria levantar o segredo do sumário sobre os membros dos serviços de inteligência. Ele me respondeu que quem tinha que fazê-lo era o secretário de Inteligência, Oscar Parrilli, e me enviou uma foto do escritório em que estava trabalhando.”

Por que ele se suicidaria se não sabia que as informações que constavam do informe eram falsas? Estas respostas com certeza poderão ser dadas por aqueles que o convenceram de que ele tinha em mãos “a denúncia do século”, transmitindo-lhe dados falsos.

Mas além disso, se ele tivesse suspeitado de falsidade de informação ou de falta de fundamento no argumento que “outros” haviam escrito, por que se suicidaria alguém que já tinha sido acusado ou desqualificado diretamente por muitos familiares das vítimas do atentado na AMIA? Em que teria mudado sua vida se o informe não tivesse fundamento e se o juiz a cargo do caso, como é comum, corrente e ocorre diariamente, ditasse um “fique à disposição e reserve seus argumentos até que sejam reunidas mais provas”?

Por que se suicidaria alguém que, sendo promotor, gozava de uma qualidade de vida excelente, ele próprio e sua família? E mais, por que pediria emprestada uma arma para se suicidar quando o promotor tem duas armas registradas em seu nome no RENAR? Uma pistola semiautomática marca Bersa calibre 22 (semelhante à que foi encontrada ao lado de seu corpo) e um revólver de ação dupla, marca Rossi, calibre 38.

É impossível não observar que em qualquer lugar do mundo, se alguém aparece morto por uma arma que está registrada no nome de outra pessoa, e descobre-se que essa outra pessoa é a última que esteve com ela em vida, que lhe entregou a arma no mesmo lugar do fato, sua casa, e é colaborador íntimo seu, especialista em informática que também trabalha na causa da AMIA desde 2007, é no mínimo estranho. Muito estranho. Por isso é mais que conveniente que se providencie muita proteção ao senhor Daniel Ángel Lagomarsino.

Como também é muito conveniente que se ordenem sumários e investigações o mais rapidamente possível sobre a própria custódia do promotor Nisman. Ou seja: os dez policiais federais. Eles informaram imediatamente a descoberta do fato ao 911 ou a seus superiores?

Como se permitiu a entrada no lugar onde estava o corpo do promotor Nisman de um médico particular de uma obra social, antes de transmitir informações ao juiz, a seus superiores, aos médicos forenses?

Estas e outras perguntas deveriam ser investigadas pela juíza e a promotora da causa. Sim, já sei. Chegaram a mim comentários publicados no Twitter e Facebook da juíza em questão. Manifestações não apenas de nítido teor de oposição ao Governo nacional, como também, eu diria, até ofensivas em relação à figura presidencial, manifestações essas que se revestem de gravidade maior por virem de uma funcionária pública de outro Poder. Vale mencionar de passagem que ela também fez observações relativas à sua própria instituição, no mínimo infelizes.

Mas o que mais me inquieta é que ela é a mesma juíza que presidiu a causa do “suicídio” de Lourdes Di Natale, ex-secretária de Emir Yoma, que o denunciou por pagamento de propinas e foi uma figura chave na venda ilegal de armas. O caso foi arquivado, e Lourdes continua “suicidada”.

Não foi por acaso que, em uma única nota que publiquei no dia 19 de janeiro, antes de tomar conhecimento da denúncia de Nisman, no segundo parágrafo, e referindo-me concretamente à morte do promotor Nisman, escrevi “suicídio?” com ponto de interrogação. Hoje não tenho provas, mas tampouco tenho dúvidas. Era preciso trazê-lo ao país com urgência para aproveitar o clamor internacional provocado pelos atos terroristas ocorridos na França. O próprio Nisman diz isso em seu chat, quando fala que não imaginava que o faria tão logo, aludindo a algo que viria fazer em seu retorno imprevisto.

O que ele não poderia imaginar é que o prazo tinha começado a se esgotar não apenas para a “denúncia do século”, mas para sua própria vida.

Vários meios de comunicação recordaram nos últimos dias casos de “suicídios” que nunca foram esclarecidos: o brigadeiro Etchegoyen, que investigava um caso de narcotráfico na Alfândega, enquanto a Aeronáutica era comandada por seu camarada José Antonió Juliá (pai dos dois condenados por narcotráfico na Espanha), o capitão de navio Horacio Pedro Estrada, imputado no caso da venda ilegal de armas, Marcelo Cataneo, acusado de pagar propinas no caso do Banco Nación-IBM, o caso da própria Lourdes Di Natale, que mencionei em parágrafos anteriores.

Mas o caso do promotor Nisman é diferente. Todos os casos acima citados remetem a questões de corrupção e dinheiro. O caso da AMIA é outra coisa. É o maior atentado terrorista que nosso país sofreu, e custou a vida de 85 argentinos. As vítimas e suas famílias esperam por justiça há 21 anos, e é precisamente a partir dali, do Poder Judicial, o único encarregado de investigar, acusar, julgar e condenar os responsáveis por tanta tragédia, que se pode cumprir essa demanda permanente por verdade e justiça.

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