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O ideal republicano francês desmorona em Marselha

Comunidades vivem crescentemente separadas na cidade mais muçulmana do país

Guillermo Altares
Manifestação contra a violência, no sábado 10 em Marselha.
Manifestação contra a violência, no sábado 10 em Marselha.S. NOGIER (EFE)

No centro de Marselha, as fronteiras são sutis, mas constantes e muito marcadas. O bairro mais pobre da França, o terceiro distrito marselhês, fica a poucas centenas de metros dos iates atracados no Porto Velho e de toda a renovação promovida durante o ano em que a cidade foi a capital cultural da Europa. Basta cruzar algumas ruas para passar de um mercado árabe que poderia estar em qualquer cidade do Magreb para áreas que concentram lojas de grifes luxuosas. Em cada espaço desses, a população é diferente.

Já quando se sai do centro para os grandes bairros populares do norte da cidade, os limites se tornam muito menos sutis. A malha urbana aqui é insólita: pequenos povoados de casas baixas, habitados majoritariamente pelos chamados gauleses – descendentes de franceses que não provêm da emigração –, onde ocorre uma forte concentração de voto radicais para a Frente Nacional. Esses núcleos estão rodeados por impressionantes conjuntos habitacionais populares, as Cités, guetos de pobreza e desemprego, onde vivem principalmente famílias de origem imigrante, embora em muitos casos instaladas na França há várias gerações.

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“Aqui se dá uma fissura terrível. Dizemos que não existe a identificação por comunidades, mas isso é uma hipocrisia”, argumenta Haroun Derbal, imã da mesquita que funciona junto ao dilapidado Mercado das Pulgas, situado em um estacionamento entre rodovias e velhos armazéns portuários. O mar está perto, mas é inacessível. “É mais do que uma fissura, é uma cratera, mas acredito que seja mais econômica do que étnica – o grande problema é a desigualdade”, observa por sua vez a senadora socialista Samia Ghali, prefeita de um dos setores populares da cidade, o Oitavo Distrito. O pesquisador social Fabian Pecot, 30 anos, autor do blog lagachon.com, sobre Marselha, afirma: “Falar da Marselha mestiça e multicultural é um pecado de otimismo”.

O ideal republicano francês se baseia na premissa de que os valores étnicos e religiosos devem ser deixados para trás em nome da identificação com a República, cuja força gravitacional seria tão intensa que anularia outros sinais identitários. Mas tudo isso parece longínquo demais em Marselha, segunda maior cidade da França, a mais desigual do país e a que tem a maior população muçulmana (280.000 de seus 850.000 habitantes).

Apesar da forte presença imigrante, a FN elegeu em abril um prefeito, Stéphane Ravier, em um desses bairros populares da zona norte, o Sétimo Distrito. “Foi como se tivessem levantado muros com seus votos”, diz Ghali, uma política muito respeitada, que foi notícia nacionalmente quando solicitou a ocupação das Cités pelo Exército para desarmar grupos armados. “Acredito que a cidade esteja tremendo nas bases. Estou muito inquieta, e espero me enganar”, acrescenta essa mulher de 46 anos, que se tornou em 2008 a primeira prefeita de origem árabe numa grande cidade francesa – Marselha, como outros municípios deste país, tem um prefeito central, cargo ocupado há 20 anos por Jean-Claude Gaudin, do partido centro-direitista UMP, e prefeitos de bairros, com muito poder local.

Ultimamente, muitos marselheses se perguntam por que a manifestação contra a onda de violência terrorista iniciada com a matança no Charlie Hebdo foi menos numerosa aqui do que no resto do país. Para muitos, a baixa participação reflete uma divisão política profunda, mas também o grave mal-estar de uma população muçulmana que se sente esquecida, estigmatizada e, depois do horror jihadista, ameaçada.

“Para nós é um duplo castigo, porque há alguns loucos que assassinam em nome do islamismo, e o Charlie Hebdo, que ri do profeta”, diz o imã Haroun Derbal, buscando explicar a baixa participação de muçulmanos na passeata. Omar Djellil, um conhecido ativista da comunidade islâmica que já passou por todas as colorações políticas – chegou a ser amigo do fundador da Frente Nacional, Jean-Marie Le Pen – e que combateu na Bósnia nos anos noventa, explica, tomando um chá verde, que “a comunidade muçulmana está cansada de se justificar”. “No colégio, meu filho rasgou o cartaz de ‘Eu sou Charlie’,e a professora me ligou. Apoiei o meu filho. Nós condenamos o terrorismo mais do que ninguém, mas não se pode insultar o profeta repetidamente.”

Situado junto ao porto, o Terceiro Distrito resume a história da cidade. Durante séculos, foi a zona onde viviam os trabalhadores portuários, mas, com a decadência econômica a partir dos anos setenta, essa população foi embora. Atualmente, 55% das famílias locais vivem abaixo da linha da pobreza (renda inferior equivalente a 2.960 euros por mês). A população é, em sua imensa maioria, de origem imigrante. Neste bairro, um grupo de mães espera seus filhos na porta de um colégio vizinho a conjuntos habitacionais que elas descrevem como “mercados de todo tipo de tráfico”. Tudo isso acontece ao lado da nova Marselha, da cidade que atrai um milhão de passageiros de cruzeiros por ano.

Como exemplo do abandono dos bairros populares, as mães citam um fato sobre o qual o Le Monde escreveu numa reportagem intitulada “A cidade litorânea onde as crianças não sabem nadar”: a ausência de piscinas. Nos bairros do norte, 285.000 habitantes dividem quatro centros esportivos. “O pior”, explica Hinda, uma mãe de família de 45 anos, “é que é obrigatório aprender a nadar”.

Os currais da Frente Nacional

Além do clássico inevitável Marcel Pagnol e do grande autor do roman noir Jean-Claude Izzo, ambos já falecidos, o grande cronista atual de Marselha é o cineasta Robert Guédiguian, que em seus filmes, especialmente As Neves do Kilimanjaro, soube narrar as inquietações dos habitantes de uma cidade complexa, apaixonante e destroçada. Esse cineasta, habituado a descrever a vida nos pequenos povoados que formam Marselha – nos quais o emprego foi escasseando desde que o porto começou a perder importância, na década de setenta –, acredita que muitos dos seus personagens acabarão votando na Frente Nacional, já que é nesses lugares que está o seu curral eleitoral.

“Acho que de imediato seria preciso acabar com a abertura da Europa, sobretudo no Leste. Pelo menos as quadrilhas ficariam sem armas”, afirma Michel, de 42 anos, um morador do Sétimo Distrito, governado pela FN. Numa quitanda próxima dali, os moradores hesitam em expressar sua opinião. O dono relata: “Aqui estamos tranquilos, mas sabemos que, se isto aqui estourar, há muitas armas nas casas, e quem as possui não somos exatamente nós. Há muitas Kalashnikov”.

Num ponto de táxi do centro da cidade, Christian, um armênio de 43 anos (Marselha tem uma comunidade armênia de 80.000 pessoas, que se instalou depois do genocídio na Turquia), revela seu voto para a Frente Nacional: “Não sou racista, mas há problemas que não foram solucionados em dez anos, aqui os delinquentes voltam para a rua em questão de horas. É um voto para dizer que estou cansado”. Christian fala da insegurança como um dos grandes problemas da cidade. Depois de um 2013 catastrófico – 24 homicídios, o pior índice em 15 anos –, o ano passado foi um pouco melhor, com uma redução de 20% nos pequenos delitos, embora os ajustes de conta tenham prosseguido, com um saldo de 17 mortos. Já o ano de 2015 começou muito mal: um menor foi assassinado em um colégio na segunda-feira, e na noite da última quarta houve o primeiro ajuste de contas desde agosto: um rapaz de 25 anos morto em uma Cité. Naturalmente, ocorreu nos bairros do norte.

“Republicanismo? Procure crianças que não sejam de famílias imigrantes neste colégio. Vivemos lado a lado, mas não juntos”, prossegue Hinda. Louise, uma professora de 40 anos, acrescenta: “O caminho deles está totalmente traçado”. “Quando fomos jovens, estávamos muito mais misturadas. Nossa preocupação era a integração”, afirma outra mãe. “Agora isso desapareceu, mas acredito que seja de propósito.” Perguntada sobre as impressões dessas mulheres a respeito da falta de oportunidades para seus filhos, a senadora Ghali responde sem hesitar: “Há um racismo muito profundo neste país”.

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