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O terror jihadista coloca a França diante de um desafio histórico

Polícia mata agressores do ‘Charlie Hebdo’ e um cúmplice. Morrem ao menos quatro reféns A crise reaviva o debate sobre identidade francesa e integração dos muçulmanos

Agressor, acusado de ter matado um policial na quinta, fez reféns em supermercado kosher, que obedece preceitos judaicos para preparação de alimentos, na zona central de Paris. Polícia invadiu local.Foto: reuters_live
Carlos Yárnoz

O terror jihadista desta semana de horror na França, com quatro ações armadas em 72 horas —que custaram a vida de pelo menos 20 pessoas em Paris e arredores— colocou o país diante do pior cenário possível. Em um Estado com cinco milhões de muçulmanos e com a ultradireitista e xenófoba Frente Nacional no auge, os atentados mostraram que a unidade política buscada pelo presidente, François Hollande, fraqueja diante da violência com matizes religiosas. A polícia abriu nesta sexta-feira um novo parágrafo nessa onda de sangue, matando três terroristas em uma operação dupla que também custou a vida de vários reféns. Mas não colocou o ponto final. “A França não acabou com as ameaças”, destacou Hollande na sexta-feira à noite, com solenidade.

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Um grupo de terroristas conectado e dividido em dois comandos mergulhou na angústia e no medo um país em alerta máximo, que viu concretizar as ameaças que o islamismo radical vinha lançando. Forças especiais cercaram e mataram no meio da tarde os três terroristas, mas em uma das duas operações, de clara intenção antissemita, também morreram quatro reféns. Os assassinos abatidos são os dois supostos autores da matança no jornal Charlie Hebdo na quarta-feira e o suposto assassino de uma jovem policial municipal no dia seguinte em Paris.

A tensa jornada desta sexta-feira começou com a localização dos irmãos Chérif e Saïd Kouachi, de 32 e 34 anos, respectivamente, a pouco mais de 30 quilômetros a noroeste de Paris. Cerca de 80.000 membros das forças de segurança perseguiam desde o dia anterior os supostos autores dos 12 assassinatos no Charlie Hebdo. Chérif foi condenado em 2008 a três anos de prisão por pertencer a uma célula de captação de jihadistas para a Al Qaeda no Iraque. Seu irmão mais velho, segundo assegurou a polícia nesta sexta-feira, recebeu treinamento militar por parte da mesma organização no Iêmen. Durante a matança no Charlie Hebdo, os dois demonstraram uma grande frieza e um bom manejo dos Kalashnikov que portavam.

Os irmãos foram identificados na quinta-feira à tarde em um posto de gasolina da N-2, ao norte de Paris. Nesta sexta-feira, no primeiro horário, roubaram um Peugeot 206 perto dessa estrada e às 9h00 mantiveram uma troca de tiros com a polícia em um bloqueio de Dammartin-en-Goële, a pouco mais de 40 quilômetros da capital francesa.

O delinquente radical que visitou Sarkozy

Amedy Coulibaly, o suposto sequestrador do supermercado judaico em porta de Vincennes, em Paris, é também, segundo acredita o Ministério do Interior francês, o autor do ataque a uma patrulha de policiais em Montrouge, na quinta-feira, na qual uma agente morreu e outro ficou ferido.

Coulibaly, de 32 anos, único filho homem de uma família de 10 filhos de Juvisy-sur-Orge, em Essonne (perto de Paris), desenvolveu logo um perfil de delinquente. Em setembro de 2002, foi condenado a seis anos de prisão por roubo. Ao sair da cadeia, como parte de um projeto de reinserção, trabalhou, entre 2008 e 2009, em uma fábrica da Coca-Cola. Foi nessa época que esteve, segundo relembrava nesta sexta-feira a mídia francesa, em uma recepção com o então presidente francês Nicolas Sarkozy.

Com o tempo, Coulibaly foi radicalizando suas crenças religiosas. Já em 2010, aparece como suspeito em vários informes dos serviços antiterroristas franceses, vinculado a uma associação de delinquentes formados em torno do movimento radical encabeçado por Djamel Beghal, condenado por terrorismo, e considerado uma seita dentro da comunidade salafista. Entre os acólitos de Beghal está também Chérif Kouachi, o mais novo dos irmãos que atacaram a sede do semanário satírico Charlie Hebdo.

A polícia pediu nesta sexta-feira todo tipo de informação sobre Coulibaly e sobre sua suposta companheira, Hayat Boumeddiene, de 26 anos, que conheceu antes de uma de suas entradas na cadeia e que também está ligada à organização radical de Beghal. Esta noite, as autoridades procuravam Boumeddiene.

Os dois terroristas se dirigiram então a uma região industrial dessa localidade. Fecharam-se junto a um funcionário feito refém na gráfica CTD Creation Tendance Devouvert. A polícia isolou a região durante todo o dia. Foi impedida a saída dos alunos das escolas e seis helicópteros vigiavam qualquer movimento.

No meio da manhã, a polícia divulgou um dado que disparou novos alarmes. O autor dos tiros que na quinta-feira pela manhã acabou com a vida de uma policial municipal de 26 anos em Paris tinha “conexões” com Chérif Kouachi. Esse terceiro homem matou a sangue frio a agente depois de um pequeno acidente de trânsito em Montrouge, a leste de Paris. “A investigação para localizá-lo avança a bom ritmo”, afirmou o ministro do Interior, Bernard Cazeneuve, na manhã de sexta-feira.

Apenas duas horas depois, por volta da uma da tarde, um indivíduo armado com dois fuzis Kalashnikov entrava em uma loja de comida judaica chamada Hyper Cacher, situada no número 23 da avenida Vincennes, a leste da capital, e se fechava com pelo menos meia dúzia de pessoas. A polícia demorou pouco a identificar o assaltante: era o mesmo que tinha assassinado a guarda municipal. Seu nome: Amedy Coulibaly, de 32 anos. Tinha diversos antecedentes. Mais importante, o de ter participado na tentativa frustrada de evasão de um especialista em bombas do GIA argelino (Grupo Islâmico Armado) preso em Paris. Condenado a cinco anos pelo problema, saiu da prisão em março de 2014 e foi obrigado a usar um bracelete eletrônico até meados de maio.

Chérif Kouachi, um violento antissemita, segundo Cazeneuve, tinha sido investigado pelos juízes por sua implicação nesse mesmo caso, ainda que seu processo tenha sido arquivado. Por isso, a polícia anunciou com convicção que havia “conexões” entre Coulibaly e Chérif. Agora comprovou que, além disso, ambos mantinham contatos regulares. A polícia também procurava esta semana Hayat Boumeddiene, de 26 anos, companheira de Coulibay.

A rede de televisão BFM garantiu depois das 19h30 que seus jornalistas tinham estado em contato com os terroristas nos dois locais. Chérif Kouachi disse à imprensa que pertencia à Al Qaeda no Iêmen e que era financiado pelo imã Anuar al Aulaki. Segundo a BFM, às 15h00 foi Coulibaly que contatou por telefone a rede para dizer que pertencia ao Estado Islâmico e que agia “sincronizado” com Chérif Kouachi. Em um dos contatos com a rede, o telefone da gráfica ficou fora do aparelho e foi possível ouvir muitos comentários dos terroristas.

Foi essa provável coordenação ou sincronização entre as duas ações terroristas que fez com que que o também duplo ataque policial a ambos os lugares, a 43 quilômetros de distância —Dammartin-en-Goële e a avenida Vincennes em Paris—, fosse desencadeado na mesma hora, às cinco e dez da tarde.

Quatro fortes explosões precederam o ataque em Paris. Enquanto a operação se desenrolava na capital, a polícia informou que os terroristas refugiados na gráfica tinham acabado de morrer por tiros dos agentes, enquanto o refém tinha sido libertado. Apenas um policial ficou ferido. Na loja kosher, o drama teve consequências piores. Morreu o terrorista, mas também quatro reféns, segundo as autoridades.

O ministro do Interior, Bernard Cazeneuve, sugeriu esta noite que o acúmulo de atos terroristas, “que demonstrou a dimensão do desafio e a brutalidade desses terroristas” era tão temido quanto esperado. “Por isso, tínhamos reorganizado a direção geral de segurança interna”, destacou. Nem ele nem o resto dos franceses acreditam que um ponto final foi colocado. “Continuamos vigilantes.”

Nos últimos momentos do dia, Hollande, que anunciou sua participação na grande manifestação de domingo em Paris —à qual também irão chefes de Estado e de Governo europeus— pediu mais uma vez “a vigilância, a unidade e a mobilização”. “Sairemos mais fortes”, afirmou. “Ainda podemos sofrer mais ataques”, advertiu seu primeiro-ministro, Manuel Valls. “Estamos diante de um desafio terrorista sem precedentes.”

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