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Ataque terrorista em Paris

“Vamos pagar pelo que os outros fizeram”

Moradores de Goutte d'Or, bairro parisiense com maior população islâmica, temem aumento da islamofobia na sociedade francesa após atentado a sede de jornal francês

Álex Vicente
Manifestação em Goutte d'Or contra ofensiva de Israel em Gaza, em meados de 2014.
Manifestação em Goutte d'Or contra ofensiva de Israel em Gaza, em meados de 2014.SLOMKA MICHEL (AFP)

La Goutte d'Or é um dos bairros parisienses com maior população muçulmana. Está aos pés da colina de Montmartre, onde se produzia o vinho de gotas douradas que deu nome a este subúrbio e onde Zola ambientou alguns de seus romances. Neste dia inundado de más notícias e de chuva pegajosa, Mustafá compareceu, como todas as tardes, à oração das 15h.

Os acontecimentos da véspera continuam inquietando este jovem do Magreb. "Não gostamos nada do que aconteceu. Nossa religião não diz isso", afirma antes de desaparecer nos corredores do Instituto de Culturas do Islã, centro criado pela prefeitura de Paris e que oferece cursos de árabe, bérbere e turco, além de possuir um espaço para exposições, uma casa de banhos, um salão de chá e uma sala de orações. Cita um versículo do quinto sura do Alcorão: "Quem mata uma pessoa, sem que tenha cometido um crime ou semeado a corrupção na Terra, é como se tivesse matado toda a humanidade.

Na esquina aparece Hasán. Mora há quatro décadas na França, três delas comandando um açougue halal, segundo o costume islâmico, neste bairro multicultural. "É uma matança sem motivo. Neste país é possível se expressar livremente. Pode ser que minha opinião não te agrade", diz o açougueiro, jurando que o bairro continua "para baixo" pelo o que aconteceu na quarta-feira. "O problema é que os outros fazem, mas somos nós que pagamos".

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Sua inquietude parece amplamente compartilhada. As associações de muçulmanos franceses temem que o clima de islamofobia atual —73% dos franceses têm uma "imagem negativa" do islamismo, segundo uma pesquisa de 2013— aumente depois dos assassinatos de 7 de janeiro. Acabarão sendo suas vítimas colaterais?

"Já somos", responde Houria Bouteldja, porta-voz da organização Indígenas da República, grupo antirracista que convoca a França a assumir sua herança colonial, em referência aos três ataques contra mesquitas registrados na quinta-feira. "A islamofobia já existia na França no nível cotidiano e no institucional. Esse atentado não fez mais do que lhe dar asas e pretextos para se exibir de maneira ainda mais explícita". Bouteldja, franco-argelina de 40 anos, entrou para a militância depois dos atentados de 11 de setembro, que segundo ela possuem várias semelhanças com o atual. "Como naquela ocasião, voltamos a ser todos culpados. Que exijam que nos desvinculemos desse atentado é um insulto à comunidade muçulmana. Para 'de-solidarizarmos', teríamos que ter sido solidários em algum momento", denuncia a porta-voz, que alerta contra "aqueles que instrumentalizam a tragédia para se beneficiar da agenda política da ultradireita".

Cerca de 73% dos franceses têm uma imagem negativa do islã

Elsa Ray tem 28 anos e se converteu ao Islã já adulta. Em sua relação com outros cidadãos, notou um antes e um depois. "Já era sensível à questão, mas quando coloquei o véu vi como o olhar das pessoas mudou", diz Ray, porta-voz do Coletivo contra a Islamofobia, associação antirracista conhecida pela contundência de suas ações e comunicados.

Desta vez, no entanto, defendem a unidade e a moderação. "A vítimas colaterais do atentado não são apenas nós muçulmanos, mas a França inteira. É preciso evitar os amálgamas e a divisão. Esse será o principal desafio para os políticos e a mídia", opina.

Na outra margem do Sena, as instituições que representam os muçulmanos franceses se expressam na mesma linha. Dalil Boubakeur, moderado diretor da Grande Mesquita de Paris, classificou o atentado como um "ato de barbárie". "É uma declaração de guerra estrondosa. Os tempos mudaram. Entramos em um novo período desse confronto", afirma Boubakeur, que também preside o Conselho Francês do Culto Muçulmano, criado em 2003 como interlocutor da população islâmica com as autoridades e encarregado de coordenar a construção de mesquitas e a formação dos imames franceses. "Mais do que nunca, os valores da República, quer dizer, a liberdade —incluída a de expressão— a igualdade e a fraternidade devem ser nosso bem comum", afirmou a Reunião de Muçulmanos da França, cujo presidente, Anouar Kbibech, assumirá o comando do Conselho Francês em junho de 2015.

Para todos eles, seria uma tentativa de impedir a queda "na armadilha política montada para os terroristas", como afirma Robert Badinter, ministro da Justiça nos tempos de François Mitterrand, que proibiu em 1981 essa mesma pena de morte que agora alguns radicais pretendem desenterrar.

"Esperam que a ira e a indignação se traduzam na expressão de reprovação e hostilidade em relação a todos os muçulmanos da França", disse. Por sua vez, o escritor marroquino Tahar Ben Jelloun contribuía com suas análises nas colunas de uma edição especial do Le Monde, intitulada O 11 de Setembro Francês. "Não é uma tendência de alguns vândalos, mas a vontade radical e feroz de impedir que os muçulmanos possam praticar sua religião em terra laica (...) para os transformar em inimigos da França," afirmou o escritor marroquino.

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