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Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

Minha retrospectiva

Destaco alguns fatos que, no meu ponto de vista, devem ser relembrados entre os mais significativos do ano que se encerra

Talvez porque necessitemos de certo ordenamento em nossa vida, aceitamos dividir o tempo em períodos, com início e fim pré-determinados, numa espécie de consolação para o imponderável ciclo da existência, que, embora conte com um prelúdio, não conseguimos quase nunca adivinhar o término. Para tanto, fracionamos o transcurso da história: a pessoal, delimitada pelos meses escoados entre um aniversário e outro; a coletiva, pelos dias consumidos entre 1º de janeiro e 31 de dezembro. Trata-se de um momento de reflexão: se no plano individual permite-nos ao mesmo tempo resgatar e projetarmo-nos, já que somos os únicos responsáveis por nossa destinação, no plano mais amplo nos exibe como figurantes, a maioria; coadjuvantes, uns poucos; raros como protagonistas. É na convergência da história individual com a coletiva que ganhamos o estatuto de ser no mundo.

Isto posto, passo a destacar alguns fatos que, no meu ponto de vista, devem ser relembrados entre os mais significativos do ano que se encerra. Cada um deles suscitou uma ponderação, cada um deles provocou uma mudança, sutil algumas vezes, radical, outras, na forma de perceber o mundo em que estou mergulhado. Os episódios que saliento não são, necessariamente, os mais importantes de 2014, mas, com certeza, o são, por motivos os mais diversos, para mim.

Comecemos pela questão da violência. Há cerca de 710.000 pessoas encarceradas no Brasil, o que nos coloca em terceiro lugar no ranking mundial. Se for levado em conta os mandados de prisão em aberto, cerca de 300.000, este número ultrapassaria em muito um milhão de pessoas. E as penitenciárias, já se tornou clichê, tornaram-se faculdades de pós-graduação em banditismo. Superlotadas, nesses lugares, sujos e promíscuos, imperam soberanas as facções do crime organizado. Assistimos, impotentes, cenas de terror contra os internos e de ameaça contra a população em geral. O tráfico de drogas, o abismo social, a corrupção dos agentes do sistema, a legislação permissiva, o Estado inoperante, uma sociedade que se alicerça somente na capacidade de consumir de seus cidadãos, tudo alimenta a insegurança em que estamos imersos, moremos em megalópoles como São Paulo, Rio de Janeiro ou Fortaleza, ou em pequenas cidades como Cataguases ou Vacaria.

A sensação de impunidade contamina todas as classes sociais. Falsa para os pobres, que, cometendo crimes, são condenados à morte, pena imposta por bandidos nos presídios ou pela polícia, nas ruas; verdadeira para aqueles que podem se cercar por bons advogados. A obediência às leis ocorre pela internalização de princípios éticos, mas também pela percepção de seu emprego na prática. E o que assistimos no Brasil é o exercício sistemático do desmando, da infração e do abuso pelas autoridades, que, agindo assim, constituem-se em péssimos exemplos replicados por todas as outras pessoas. Casos como o do juiz que no Rio de Janeiro, pego sem habilitação numa blitz de Lei Seca, deu voz de prisão à agente de trânsito, obrigada ainda a pagar uma indenização ao magistrado; ou de Paulo Maluf, impedido de sair do país sob risco de ser capturado pela Interpol, mas considerado ficha limpa pelo Tribunal Superior Eleitoral, que entendeu que o ex-prefeito cometeu crime de improbidade administrativa “sem intenção”, demonstram que há diferentes categorias de habitantes no Brasil.

Aliás, a política nacional migrou definitivamente para as páginas policiais. Escândalos sucedem escândalos – e como a corrupção desconhece partidos, a própria democracia fica desmoralizada. O processo eleitoral serviu para a manifestação dos nossos mais ocultos sentimentos de intolerância: surgiu contrapondo, de maneira maniqueísta, aecistas e petistas, e evoluiu para a fomentação do ódio puro e simples contra os nordestinos. Após o pleito, algumas centenas de pessoas foram às ruas pedir a anulação do resultado que deu a reeleição a Dilma Rousseff – secundados por grupos que pedem a volta dos militares ao poder. Trata-se de inconformismo obscurantista somado à ignorância. Justamente este 2014 marca os 50 anos da implantação da ditadura, cujo legado, para além de mortos e desaparecidos, foi o desmantelamento do Estado – a ruína dos sistemas de educação e saúde, o enraizamento da corrupção em todas as esferas da administração pública, o desprezo pelo meio ambiente, o aumento do fosso entre ricos e pobres, e, pior que tudo, o esvaziamento do conceito de autoridade, substituído pela prática autoritária em todos os domínios.

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Esse despotismo provocado pela ausência de autoridade estimula, por reação, o recrudescimento de um outro tipo de despotismo, o que cerceia a liberdade, representado pela significativa presença do fundamentalismo religioso no Congresso Nacional. Os fundamentalistas pertencem aos mais diversos partidos e originam-se tanto nas igrejas pentecostais e neopentecostais, quanto nas igrejas católica e protestantes, unindo-se para barrar qualquer legislação que considerem contrária à moral e aos bons costumes, como o direito ao aborto e a união civil homossexual, ou para fomentar leis mais conservadoras, como as que dizem respeito à maioridade penal e à reforma agrária, por exemplo.

O fundamentalismo sempre é fruto da ignorância. Baseia-se na negação da diferença, na imposição do pensamento único, na leitura simplória do mundo, ou seja, o oposto da sofisticação da consciência plena resultante da educação para a cidadania. O Brasil ocupa a 58ª posição, entre 65 países, no ranking do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) – lemos, em média, apenas quatro livros por ano (incluindo didáticos e religiosos). E não há nenhum programa sério de governo, de nenhum governo, destinado à melhoria da qualidade da educação, que no Brasil se confunde com instrução e a ela se reduz. Instrução é dada na escola, onde nos são oferecidas ferramentas básicas para tornar pragmático o conhecimento adquirido. Educação inclui a instrução, mas a ultrapassa, pois exige a participação efetiva da família, que nos envolve em afeto e nos alicerça em princípios éticos, e do conjunto da sociedade, que os consolida e aperfeiçoa, nos tornando cidadãos responsáveis dentro de uma comunidade com interesses diversos, mas convergentes. Eis a nossa maior falha, o nosso maior desafio.

A ignorância empurra-nos fatalmente para as sombras – temos nos tornado mais e mais intolerantes, política e socialmente. A desinformação transparece no aumento da presença da aids entre jovens de 15 a 24 anos; no racismo sofrido pelo goleiro Aranha, do Santos, numa partida contra o Grêmio, em Porto Alegre; nos casos de violência sexual ocorridos no campus da USP, a melhor universidade brasileira; na bestialidade contida na frase do deputado federal Jair Bolsonaro contra sua colega, Maria do Rosário: “Não estupro você, porque você não merece”. Por isso tudo, percebemos que ainda estamos longe, muito longe, de um projeto de civilização minimamente decente.

Desejo um magnífico 2015 para todos, principalmente para você que vem aqui toda semana bisbilhotar as ideias desse pobre escriba.

P.S.: Se não falei dos 7 a 1, não foi por esquecimento.

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