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A testemunha que mais prejudica Pyongyang

Shin é o único norte-coreano a ter escapado de um campo de prisioneiros políticos

Naiara Galarraga Gortázar
O desertor e ativista Shin Dong-hyuk em fevereiro em Seul.
O desertor e ativista Shin Dong-hyuk em fevereiro em Seul.© Kim Hong-Ji / Reuters (REUTERS)

No instante em que nasceu, em 19 de novembro de 1982, Shin Dong-hyuk foi condenado à prisão perpétua e trabalhos forçados. Durante seus primeiros 23 anos, sobreviveu submetido ao pior castigo concebido pelo regime mais cruel do mundo, o da Coreia do Norte. Sua primeira lembrança é uma execução, à qual foi obrigado a assistir com os demais 15.000 internos do Campo 14. Tinha quatro anos. Foi primeira das muitas que presenciou – com réus que morreram com a boca cheia de pedras, para que não amaldiçoassem o Estado em seu último suspiro. Enquanto isso, crescia, corroído pela fome, em uma casa sem água, chuveiro, privada, camas, cadeiras nem mesas.

Shin é diferente de qualquer outro desertor norte-coreano do qual se tenha notícia, porque nasceu na zona mais vigiada de um campo de prisioneiros políticos e conseguiu escapar para contar ao mundo como é aquele inferno, e também para relatar sua incrível fuga e a descoberta da liberdade. Sua extraordinária história, Fuga do Campo 14 (Editora Intrínseca, 2012), foi escrita por Blaine Harden, então correspondente do The Washington Post em Seul.

Aos 14 anos, cumprindo regulamentos que recitava de cor, delatou sua mãe e seu irmão. O item três da primeira regra do campo diz: “Todo aquele que for testemunha de uma tentativa de fuga e não a relatar será executado imediatamente”. Shin havia escutado sua mãe e o irmão sussurrarem planos de fuga. Denunciou-os por cumprir as normas e com a esperança de receber algumas migalhas a mais de comida ou um trabalho menos extenuante. Não conseguiu nem uma coisa nem outra.

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Foi recolhido durante seis meses a uma prisão subterrânea e brutalmente torturado. Naquela masmorra, conheceu um detento mais velho, que nunca lhe disse seu nome, mas que lhe revelou que lá fora, além das grades eletrificadas, havia um mundo no qual era possível comer até se saciar. Anos depois, outro detento, o sr. Park, viajado e instruído, falou-lhe da China, da União Soviética... Juntos organizaram a fuga, mas Park morreu na tentativa. Eletrocutou-se na cerca, e seu cadáver, ao cair, deixou o buraco pelo qual Shin conseguiu escapar. Era janeiro de 2005. Vagou até a fronteira e, um mês depois, entrou na China. Em 2007, chegou à Coreia do Sul.

O livro é dedicado “aos norte-coreanos que continuam nos campos”. Isso inclui o pai dele, deixado para trás por Shin. O desertor transformado em ativista temia que ele tivesse sido executado, mas na segunda-feira passada descobriu que ele está vivo, graças a um vídeo de propaganda do regime, intitulado Mentira e Verdade, que busca desacreditar seu relato. “Faça o que fizer o ditador contra o meu pai, não irei me calar”, escreveu Shin em seu Facebook nesse dia.

Apesar da idade semelhante, Shin, prestes a completar 32 anos, é o contrário do ditador Kim Jong-un, líder do regime comunista hereditário fundado por seu avô durante a guerra que dividiu a península coreana (1950-53). Shin mede 1,67 metro e pesa 55 quilos. No Campo 14, frequentava uma escola onde o único livro era uma gramática coreana. Do professor – que dava aulas fardado e com pistola no cinto – ele nunca soube o nome. Sua vida era uma mera sobrevivência. Já Kim, de 31 anos, oficialmente cognominado “querido marechal”, está tão obeso quanto foram seu pai e seu avô – o que contrasta com a magreza crônica vista inclusive entre norte-coreanos mais favorecidos – e acaba de ser operado de um cisto no tornozelo por um médico europeu, segundo fontes sul-coreanas. Kim estudou em um colégio na Suíça e adora o luxo.

Em 30 de agosto de 2013, Shin compareceu a uma audiência pública organizada por uma comissão de inquérito da ONU na capital sul-coreana. Foi a testemunha número um contra o regime da Coreia do Norte, que a comissão deseja submeter ao Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade. Cerca de 120.000 pessoas vivem atualmente sob condições similares às descritas por Shin, cujo relato é impossível confirmar, mas é compatível com os testemunhos de outros prisioneiros e carcereiros que desertaram e com as imagens dos campos feitas por satélites.

A ONU acusa as autoridades de Pyongyang de violarem sistematicamente os direitos humanos, numa magnitude “que excede qualquer outra em duração, intensidade e horror”. O Campo 14 existe há 55 anos. O campo de extermínio nazista de Auschwitz funcionou durante três anos, conforme recorda Harden em sua obra.

Shin já era um prisioneiro adulto quando descobriu seu pecado, aquele que levou sua família para esse campo, localizado a 65 quilômetros da capital: dois tios paternos haviam desertado para o Sul décadas atrás. No perverso sistema norte-coreano, a família paga pelo crime.

Yeosang Yoon, diretor da ONG sul-coreana Centro da Base de Dados para os Direitos Humanos Norte-Coreanos, que o ajudou a escrever uma primeira autobiografia em coreano (com 500 exemplares vendidos), recorda num email a evolução desse jovem. “Embora fosse parecido com qualquer outro coreano e falasse coreano, sua maneira de pensar quando chegou era uma prova nítida da sua origem, como se tivesse chegado de Marte ou Júpiter. Shin se adaptou gradualmente, e hoje é como eu. Essa transformação que presenciei é a melhor lembrança que tenho.”

O regime já não está totalmente imune às crescentes críticas pela brutal violação dos direitos mais básicos. Pela primeira vez em 15 anos, ele enviou seu chanceler à Assembleia Geral da ONU, além de divulgar nesse organismo multilateral um contrarrelatório em que Pyongyang, com sua retórica habitual, rebate as “visões distorcidas apresentadas por forças hostis à República Popular Democrática da Coreia, sobretudo com relação à situação dos direitos humanos, que causam sérios mal-entendidos”.

Shin, filho de dois presos unidos pelos guardas como prêmio por seu bom comportamento, tem os braços deformados porque cresceu fazendo trabalhos forçados, carrega enormes cicatrizes pelas torturas e lhe falta meio dedo. Seu passado é um trauma difícil de superar. No Campo 14 não havia aniversários, e ele só comemorou o seu pela primeira vez aos 26 anos.

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