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China discute a reforma do Poder Judiciário para garantir a paz social

O Partido Comunista quer dar mais poder aos juízes do que aos políticos

Macarena Vidal Liy
Policiais chineses tampam com cartazes o acesso ao tribunal onde é julgado um professor em Urumqi (Xinjang) em setembro.
Policiais chineses tampam com cartazes o acesso ao tribunal onde é julgado um professor em Urumqi (Xinjang) em setembro.goh chai hin (AFP)

Um discreto hotel do oeste de Pequim vai se transformar nesta semana no coração político da segunda potência mundial. A elite do Partido Comunista da China se reunirá a portas hermeticamente fechadas em seu plenário anual que pela primeira vez será dedicado à reforma do poder Judiciário e ao Estado de direito. É um projeto que o presidente Xi Jinping considera imprescindível para consolidar a legitimidade do Partido que comanda o país. E urgente, por causa do enorme desprestígio do setor na sociedade e o desencanto de seus profissionais. A dúvida é se as mudanças anunciadas permitirão um sistema mais justo e independente ou se – frente ao endurecimento da campanha contra as vozes dissidentes – ficarão em meras formalidades.

“Veremos uma abundância de linguagem positiva sobre reforma judicial, profissionalização judicial, opiniões positivas sobre o papel dos tribunais, a importância do Estado de direito e de um Governo submetido às leis. Mas este tipo de linguagem já é bastante comum e já aparecia no documento final do plenário anterior. A questão é qual o resultado na prática”, afirma Jacques de Lisle, catedrático de Direito e diretor do Centro de Estudos sobre Ásia Oriental da Universidade da Pensilvânia (EUA).

Para isso é preciso levar em conta que na linguagem política chinesa, a expressão que pode ser traduzida como Estado de direito (yifazhiguo) não significa o mesmo que no Ocidente: três poderes independentes onde, em caso de conflito, é a lei que tem a última palavra. Na China, a autoridade suprema é o Partido, que define e aplica a lei.

Não cabe, portanto, conjeturar sobre uma reforma que conduza no futuro a um sistema judiciário similar ao ocidental ou aborde questões como os direitos humanos ou os processos extrajudiciais. Ao contrário, espera-se uma série de mudanças com o objetivo precisamente de reforçar o controle do Governo central e sua legitimidade, através de novas medidas que lutem contra a corrupção, por exemplo. A esperança é que as inovações introduzam também maior segurança jurídica para os cidadãos e maior transparência dos tribunais.

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“Ainda não se cumprem os requisitos para uma reforma cujo objetivo seja a independência judicial”, opina o catedrático de Direito He Weifang da Universidade de Pequim, que vê as reformas como meras “mudanças técnicas” e confessa estar “pessimista”. “Não serão abordadas”, diz, “questões importantes, como a relação entre o Partido e a administração da justiça. Não se refletiu nada sobre a enorme influência negativa que teve a época de Zhou Yongkang [o antigo chefe dos serviços de segurança que deu a estas forças um enorme poder, muito superior ao dos tribunais] no desenvolvimento do sistema legal.” Zhou está sendo investigado por corrupção e precisamente durante o plenário sua expulsão do Partido poderia ser anunciada.

Neste verão, a Comissão da Reforma, presidida pelo próprio Xi Jinping, já adiantou uma série de linhas gerais para as mudanças. Em julho, o Tribunal Supremo publicou um plano quinquenal de reforma desta instituição – e dos tribunais que dependem dela –, com o objetivo de aumentar as competências dos juízes e reduzir o poder das autoridades políticas locais sobre os tribunais judiciais que julgam mais de 11 milhões de casos por ano.

Os afiliados ao PCC acusados de corrupção sofrem detenção extra-judicial

M. vidal liy

Um processo que fica fora do sistema judicial na China é o conhecido como shuanggui, uma forma de detenção para membros do Partido Comunista (PCC) suspeitos de terem cometido "violações da disciplina", geralmente um eufemismo para casos de corrupção.

É o procedimento ao qual foi submetido durante mais de um ano Bo Xilai, a antiga estrela do PCC que caiu em desgraça em 2012 porque sua mulher assassinou um empresário britânico. Atualmente está submetido a este processo, aparentemente desde agosto do ano passado, seu antigo protetor, Zhou Yongkang, que chegou a ser um dos nove dirigentes mais poderosos da China.

A campanha contra a corrupção empreendida pelo presidente chinês, Xi Jinping, desde sua chegada ao poder, garante que este sistema não vai cair em desuso: somente em Pequim, o número de casos de possível corrupção entre funcionários alcançava os 772 nos primeiros oito meses deste ano, segundo o jornal Novo Pequim.

O shuanggui, um processo rodeado de segredo, é colocado em prática quando a Comissão Disciplinar, o braço de controle interno do PCC, detecta irregularidades no comportamento de algum dos 85 milhões de membros do Partido. Detido pelos investigadores da comissão, o suspeito fica isolado em um lugar desconhecido, sem contato com advogados, amigos ou família.

Durante sua detenção, que pode se prolongar por meses até que seja colocado em liberdade ou entregue à justiça comum para ser julgado, o afiliado é submetido a constantes interrogatórios para que confesse. O uso de tortura não é desconhecido, segundo organizações pró-direitos humanos. ONGs como Dui Hua, com sede em São Francisco (Califórnia, EUA), mencionam práticas como "privação de sono, simulação de afogamento, queimaduras na pele com cigarros e surras".

Um engenheiro suspeito de corrupção, Yu Qiyi, morreu afogado em abril do ano passado enquanto estava submetido ao shuanggui. Seu corpo mostrava lesões externas e internas. Seus seis interrogadores foram julgados e em setembro de 2013 receberam penas entre quatro e 14 anos de prisão.

O advogado da família de Yu, Pu Zhiqiang, previa iniciar uma campanha contra o shuanggui. Mas Pu, um dos advogados mais conhecidos na China por sua defesa de casos de direitos civis — foi advogado também, entre outros, do artista e dissidente Ai Weiwei —, encontra-se detido desde maio, acusado de "criar controvérsias e obter informação sobre pessoas por meios ilegais".

Até agora, são as autoridades municipais que estão encarregadas de nomear e promover os juízes, podendo manipulá-los com facilidade. É frequente que o resultado de uma causa já tenha sido decidido em segredo antes de começar a audiência. Um juiz tem, na verdade, muito pouco poder. A opinião do fiscal, ou da Polícia, pode contar mais que a dele. Nem sequer tem independência para emitir a sentença de um julgamento no qual viu as provas e escutou as testemunhas: um conselho judicial precisa aprovar a sentença.

Como resultado, a atitude dos cidadãos em relação aos tribunais é, no mínimo, de suspeita. Os milhares de solicitantes que rondam as ruas de Pequim vindos de toda a China com a esperança de contar seu caso a algum dirigente e que este intervenha, passando por cima dos juízes, é prova disso.

As reformas colocadas pelo Supremo colocam a nomeação dos juízes nas mãos das autoridades provinciais, o que teoricamente evitaria as pressões em nível local. Também permitirá que emitam sentenças – embora não em todos os casos; os politicamente delicados ficarão excluídos – sem contar com o conselho judicial.

Abre-se também a possibilidade de criar tribunais especiais para disputas sobre meio ambiente – um dos assuntos que geram mais mobilizações de protestos, das dezenas de milhares que acontecem na China a cada ano – ou sobre a proteção da propriedade intelectual, um dos temas que mais preocupam os investidores estrangeiros.

O presidente do Tribunal Supremo, Zhou Qiang, afirmou também que aumentará a transparência “para melhorar a credibilidade pública dos tribunais” e será permitido que os estrangeiros assistam com “regularidade” os julgamentos que afetem empresas estrangeiras. Agora não podem assistir sem permissão do juiz.

São mudanças que chegam tarde demais para o advogado Li, de 32 anos, que só concorda em ser identificado pelo sobrenome. Foi juiz durante dois anos. Na época ganhava apenas 3.000 yuanes (ao redor de 1.200 reais) por mês e sofria “com sobrecarga de trabalho, excesso de casos, muita pressão, pouco reconhecimento e nenhum sentido de honra”. Agora se dedica a defender casos mercantis e civis nos tribunais de Pequim. Embora não queira divulgar seu salário atual, é terminante ao afirmar que “é muito melhor que o dos juízes”.

Li não voltaria a ser juiz. Mas tem clareza no que recomendaria ao plenário do Partido: “Um sistema judicial mais completo, que conceda mais direitos e competências aos magistrados com o objetivo de equanimidade e a transparência da justiça a serviço do povo.”

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