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Ali onde vive a morte

Fotógrafa britânica retrata lugares onde ocorreram os fuzilamentos da I Guerra Mundial

Guillermo Altares
Soldados Ahmed ben Mohammed el Yadjizy, Ali ben Ahmed ben Frej ben Khelil, Hassen ben Ali ben Guerra el Amolani, Mohammed Ould Mohammed ben Ahmed / 17:00 / 15.12.1914 Verbranden-Molen, West-Vlaanderen.
Soldados Ahmed ben Mohammed el Yadjizy, Ali ben Ahmed ben Frej ben Khelil, Hassen ben Ali ben Guerra el Amolani, Mohammed Ould Mohammed ben Ahmed / 17:00 / 15.12.1914 Verbranden-Molen, West-Vlaanderen.Chloe Dewe Mathews

Depois de visitar os campos de batalha da Primeira Guerra Mundial, o escritor Geoff Dyer explicou que os monumentos aos mortos naquele conflito nos impressionam tanto porque são uma antecipação do que ia acontecer durante o século XX: a era da violência política em grande escala, do Holocausto e dos expurgos de Stalin, o tempo dos que vão e não regressam. A desaparição, a mistura de solidão e horror, é o que marca o livro de fotografias de Chloe Dewe Matthews, Shot at Dawn (Fuzilado ao Amanhecer), que acaba de ser publicado por Ivory Press com prólogo do próprio Dyer. Quando recebeu o pedido por parte da Rushkin School (equivalente à faculdade de belas artes) da Universidade de Oxford para realizar uma exposição relacionada com o centenário da Grande Guerra, que é lembrado neste ano, a fotógrafa britânica decidiu explorar um dos episódios mais terríveis do conflito (e nunca totalmente fechado): os fuzilados por se negarem a combater.

“Não tinha muito claro o que fazer e percorri vários campos de batalha, investiguei diferentes ideias e ao visitar In the Flandes Fields, um museu perto de Ypres, conversei com seu diretor, Piet Chielens, que é especialista nos fuzilados. Era uma história que conhecia pouco e que me deixou muito impressionada. É um dos aspectos menos conhecidos da I Guerra Mundial, porque, além do mais, os documentos só se tornaram públicos nos anos 80”, explica Chloe, em uma conversa por Skype. Durante 12 meses, ela se dedicou a investigar diferentes casos de soldados britânicos, franceses e belgas fuzilados nos campos de batalha da frente ocidental e depois localizou os lugares onde foram executadas as sentenças.

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Tirou as fotografias no mesmo momento do ano e na mesma hora. As imagens arrastam ainda uma luz devastadora e fria; muitas, como indica o próprio título do livro, foram tomadas nos primeiros momentos do dia, embora em alguns casos a hora da execução não apareça no expediente. “O mais difícil foi me documentar”, explica a fotógrafa, que teve a colaboração de vários especialistas nos fuzilados durante o conflito para realizar seu trabalho, exposto em diferentes lugares da Europa. “O problema com a informação marcou todo o processo, por isso só aparecem 23 cenários diferentes. Houve outros casos sobre os quais tinha muitos dados, os nomes das vítimas, a cidade onde ocorreram os fuzilamentos, mas faltava a localização do lugar exato e por isso não consegui incluí-los em meu projeto”.

Soldados Jean Raes e Alphonse Verdickt. Horário desconhecido/ 21.9.1914 Walem, Mechelen, Vlaanderen
Soldados Jean Raes e Alphonse Verdickt. Horário desconhecido/ 21.9.1914 Walem, Mechelen, VlaanderenChloe Dewe Mathews

Os fuzilados refletem o absurdo daquele conflito e são o centro do filme mais influente sobre a I Guerra Mundial, Glória feita de Sangue, de Stanley Kubrick, inspirada na história de um motim de tropas francesas em 1915 que foi sufocado usando o paredão. Um dos generais do filme pronuncia uma frase que resume muito bem a atitude de muitos oficiais: “A única prova de que se cumpriram as ordens seriam seus cadáveres em terra de ninguém”. Naquela época não se havia pesquisado o estresse de combate, nem se levava isso em conta, claro. Na França houve entre 600 e 700 casos, e no Reino Unidos, uns 350; pode parecer uma minúcia se comparado aos milhões de mortos que produziu o conflito, mas dá uma ideia não apenas da brutalidade da guerra, mas também da forma como os soldados foram tratados como pura carne de canhão.

No Reino Unido, foi decretada em 2007 uma reabilitação dos “fuzilados ao amanhecer” (os executados são conhecidos desta forma) e eles até contam com um monumento. No entanto, na França, trata-se de um assunto que ainda não foi fechado, apesar de que seus familiares esperavam uma reabilitação global no centenário de 2014. O historiador Antoine Prost dirigiu a realização de um relatório encarregado pelo Governo no qual afirmava que as execuções tinham um efeito de dissuasão sobre a tropa para evitar motins (realmente, na França, os executados se conhecem como “os fuzilados para dar exemplo”) e mantinha que “existe um amplo consenso na sociedade opinando que não eram covardes”. Mas, finalmente, o Governo se pronunciou contra um perdão global pela impossibilidade de separar os que foram fuzilados acusados de covardia e os que foram por diferentes delitos, como assassinato, estupro ou pilhagem, embora tenham sido feitas numerosas declarações oficiais pedindo perdão. “Na França e na Bélgica argumentam que não ocorreram apenas casos de covardia frente ao inimigo, mas também de assassinatos e estupros. Mas tudo isso pode ser parte da loucura da guerra”, explica a fotógrafa.

James Graham, 07:22 / 21.12.1915 / John Docherty 07:12 / 15.02.1916 / John Jones, horário desconhecido / 24.2.1916 / Arthur Dale, horário desconhecido / 3.3.1916 / C. Lewis / horário desconhecido / 11.3.1916 / Anthony O’Neill / horário desconhecido / 30.4.1916 John William Hasemore, 04:25, 12.5.1916 / Private J. Thomas horário desconhecido, 20.5.1916 / William Henry Burrell, horário desconhecido / 22.5.1916 / Edward A. Card, horário desconhecido/ 22.9.1916 C. Welsh, horário desconhecido / 6.3.1918 Abattoir, Mazingarbe, Nord – Pas-de-Calais
James Graham, 07:22 / 21.12.1915 / John Docherty 07:12 / 15.02.1916 / John Jones, horário desconhecido / 24.2.1916 / Arthur Dale, horário desconhecido / 3.3.1916 / C. Lewis / horário desconhecido / 11.3.1916 / Anthony O’Neill / horário desconhecido / 30.4.1916 John William Hasemore, 04:25, 12.5.1916 / Private J. Thomas horário desconhecido, 20.5.1916 / William Henry Burrell, horário desconhecido / 22.5.1916 / Edward A. Card, horário desconhecido/ 22.9.1916 C. Welsh, horário desconhecido / 6.3.1918 Abattoir, Mazingarbe, Nord – Pas-de-CalaisChloe Dewe Mathews

Cada imagem está acompanhada pelo nome do lugar, o dia e a hora (quando a informação está disponível) e os nomes das vítimas. No entanto, Dewe Matthews decidiu não incluir as histórias que cada uma dessas fotografias esconde, apesar de conhecê-las em muitos casos. “Conheço algumas das histórias, outras não. Mas não queria que fosse um projeto exclusivamente histórico, queria que fosse também artístico. É sobre a história, mas também tem a ver com paisagens. No final, embora tenha sido uma decisão difícil, preferi simplificar”, afirma. “A imensa maioria das pessoas não sabe o que aconteceu aí, tirando dois casos que se tratavam de prisões. Ao contrário dos campos de batalha, que recebem milhares de visitantes a cada ano, são lugares muito pouco frequentados e sem sinalização”.

Em um bosque nevado, perto de Verbraden-Molen, foram executados, às cinco da tarde de 15 de dezembro de 1914, quatro soldados tunisianos. Ali Ben Ahmed Ben Frej Ben Khelil, Hassen Ben Ali Ben Guerra El Amolani, Ahmed Ben Mohammed El Yadjizy e Mohammed Ould Mohammed Ben Ahmed. Certamente foram muitos mais, mas seus nomes não aparecem em nenhum documento. Trata-se de um dos casos mais terríveis no livro de Chloe Dewe Matthews: eram soldados tunisianos da 38º divisão de infantaria que se negaram a combater e foram, literalmente, dizimados. Um em cada dez soldados da 15 companhia foi fuzilado para dar exemplo, alguns historiadores afirmam que por ordem direta do próprio general Folch.

O soldado James Crozier tinha 16 anos quando se alistou. Sua mãe o acompanhou ao local de recrutamento e o oficial, que tinha o mesmo sobrenome apesar de não serem parentes, disse a sua mãe que cuidaria para que nada de ruim acontecesse com ele e fez vista grossa para sua idade. Crozier sobreviveu dois anos nas trincheiras, mas em fevereiro de 1916 não se apresentou em seu posto e foi submetido ao conselho de guerra por deserção. Em sua defesa alegou que não lembrava o que tinha feito durante os dias em que esteve desaparecido. No entanto, foi condenado à morte. Frank Crozier, o mesmo oficial que o recrutou, foi consultado sobre se a sentença deveria ser substituída e não teve a menor dúvida, devia ser executada, embora tenha pedido que o condenado pudesse chegar completamente bêbado na frente do pelotão. Ele teve que ser amarrado ao poste porque caía, literalmente, quando foi fuzilado às 07h05 do dia 27 de fevereiro de 1916. Chloe Dewe Matthews mostra uma paisagem coberta pela geada cuja gélida solidão resume um dos momentos mais terríveis de nossa história.

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