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A QUARTA PÁGINA
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Um Plano Merkel para a Ucrânia e a Europa

A UE precisa cultivar um rosto liberal frente à receita conservadora e nacionalista com propostas de longo prazo. Diante de uma Rússia expansionista, seus instrumentos devem ser políticos e econômicos antes que militares

Timothy Garton Ash
Nicolás Aznárez

A União Europeia deve elaborar um plano de dez anos para a Ucrânia. E esse plano também vai definir o que será a Europa dentro de dez anos. Em homenagem à figura política mais destacada da Europa, que impulsionou claramente a mudança da postura europeia em relação à Ucrânia, poderíamos denominá-lo Plano Merkel. Se funcionar, prevalecerá uma versão muito europeia da ordem liberal sobre uma receita conservadora e nacionalista de agitação violenta e permanente representada por Vladimir Putin. Se fracassar, fracassará novamente a Europa.

Nosso plano deve ter três frentes, militar, política e econômica, cada uma com múltiplos componentes, que teria que ir se adaptando às mudanças das circunstâncias. Os Estados Unidos têm um papel a desempenhar, mas um papel secundário, não protagonista.

Para ter um plano, nós europeus devemos saber o que estamos enfrentando. É difícil saber, porque Putin está demonstrando um estado mental típico de um autocrata do passado: errático e cheio de soberba. Mas imagino que o que pretende é manter o caos, a dispersão de poderes e a influência russa no sudeste da Ucrânia para que o país não consiga se consolidar como Estado soberano e funcional, nem se aproximar da União Europeia e da OTAN. Nesta estratégia é fundamental que haja uma fronteira porosa entre a Rússia e a Ucrânia, para que as armas e os agitadores russos a atravessem à vontade.

Essa não era a ideia inicial de Putin. O que ele queria era um Estado satélite dentro de sua União Euroasiática, não a metade de uma casa em ruínas. No entanto, agora parece que decidiu recorrer ao que no mundo pós-soviético é denominado de opção do conflito congelado. Que resposta podemos dar sem perder de vista outras possibilidades, tanto piores quanto melhores?

Alguns propõem reforçar a ajuda militar às forças armadas ucranianas, para que tenham opções de ganhar. Do ponto de vista moral, é justificável. Na prática, não é possível. Depois das reformas aplicadas ao exército russo durante os últimos seis anos, Putin conta hoje com tropas modernas e eficientes do outro lado da fronteira, e seus generais refletiram muito para elaborar novas formas de guerra encoberta e não declarada, que com tanto sucesso colocaram em prática na Crimeia e no leste da Ucrânia.

Putin está demonstrando um estado mental típico de um autocrata do passado: errático e soberbo

Não podemos transformar de uma só vez o exército ucraniano apenas com treinamentos e transferências de material, como não é possível transformar um velho Lada em uma BMW, apenas introduzindo uma caixa de câmbio da BMW e contratar um mecânico alemão. A não ser que Washington queira travar uma guerra não declarada contra uma Rússia ainda nuclear, Moscou terá sempre o que os estrategistas chamam de domínio da escalada. Putin sempre pode aumentar a aposta, e demonstrou que está disposto a fazê-lo.

Ainda assim, os países ocidentais devem proporcionar material bem escolhido, suprimentos e treinamento ao exército ucraniano, em especial às tropas fronteiriças. No longo prazo, uma das chaves para garantir que Putin não consiga seu conflito congelado é fechar essa fronteira. Além disso, a OTAN deve deixar claro que não vai tolerar nenhuma ação encoberta russa, militar nem paramilitar, em nenhum centímetro quadrado de território da Aliança e isso inclui, por exemplo, a cidade estoniana –mas habitada por russos– de Narva, na fronteira entre a Rússia e a Estônia.

É preciso haver negociações políticas e diplomáticas sempre que for possível. Mas as probabilidades de se alcançar um acordo constitucional no leste da Ucrânia que seja aceitável tanto para a Rússia quanto para Kiev são escassas. As duas partes não podem chegar a um acordo, que significa dizer palavras como descentralização, federalização e status social, nem sobre quais são as zonas em que estas palavras devem ser aplicadas (“A Ucrânia é livre para aprovar as leis que quiser”, declarou um chefe rebelde em Donetsk à AFP, “mas não pensamos em federalismo”).

E, acima de tudo, Putin não pode querer um verdadeiro acordo estável, pacífico e duradouro, porque nesse caso a Ucrânia poderia funcionar como Estado federal e aproximar-se da UE. Pode ser que ele e seus seguidores se importem com o futuro dos que chamam “russos” nos países vizinhos, mas o grande jogo que interessa ao presidente é geopolítico e não tem nada a ver com os direitos das minorias locais.

Enquanto isso, a Europa pode tomar outras medidas políticas. Agora que os parlamentos europeu e ucraniano ratificaram o acordo de associação, a UE deve ajudar a Ucrânia a ser um Estado mais ou menos funcional. Se a União pretende conquistar os habitantes de idioma russo, o melhor que pode fazer é dar passos em direção à isenção de vistos para a maioria dos ucranianos. A experiência indica que é a forma mais rápida de mudar as opiniões na Europa pós-comunista, mas é evidente que é uma dose difícil para uma Europa ocidental receosa diante da imigração.

A OTAN deve deixar claro que não vai tolerar nenhuma ação encoberta, militar nem paramilitar

Em troca desses incentivos, os ucranianos devem levar a sério a reforma de seu Estado. Isso significa, acima de tudo, combater a corrupção onipresente na política da Ucrânia pós-soviética. Isso tem que mudar.

Em relação aos russos, não devemos esquecer que, apesar de sua popularidade atual, Putin não é a Rússia nem a Rússia é Putin. Devemos levar sempre em conta essa distinção crucial. Em algum momento dos próximos dez anos, Putin irá embora.

Essa saída será acelerada caso houver sanções econômicas mais fortes contra o regime? Suas consequências já estão começando a aparecer, inclusive em empresas de energia como a Rosneft mas, a curto prazo, a mentalidade de assédio fomentada pela propaganda pode dar ainda mais força a Putin. No longo prazo, as sanções o enfraquecerão. Com o passar dos anos, os russos calcularão com pragmatismo o que mais lhes interessa. Os bolsos das famílias poderão mais do que a alma imperial coletiva.

Principalmente caso se perceba que a Ucrânia prospera e a Rússia não. Para que prospere, será crucial encontrar o difícil equilíbrio entre desenvolver a relação comercial e de investimentos da Ucrânia com a União Europeia e não cortar seus laços econômicos com a Rússia. O acordo firmado na semana passada para adiar a adoção do tratado de livre comércio entre a UE e a Ucrânia permite ganhar algum tempo para buscar uma solução.

Em seguida está a questão energética. O gás e o petróleo respondem aproximadamente pela metade das receitas federais da Rússia. Grande parte da Europa necessita do combustível russo para poder ter luz. Se a UE caminhar em direção à independência energética — que exige uma rede de interdependência energética dos Estados membros —, o equilíbrio de poder entre a Rússia e a Europa sofrerá uma alteração decisiva. Ao ajudar a Ucrânia, a Europa ajudará a si mesma.

Estas não são mais do que algumas sugestões para um plano de dez anos. Podem discordar de algumas, ou propor outras. O que não resta dúvidas é que a Europa precisa desse plano; que terá muitos componentes, não dois ou três que chamam muito a atenção; que seus principais instrumentos serão econômicos e políticos, não militares; que deverá ser constante na estratégia e flexível na tática; e que vai levar muito tempo para dar frutos. Se a Europa possuir a visão, a vontade e a paciência necessárias, o resultado vai trazer à mente a velha fábula do vento frio do Leste e do sol que apostam qual dos dois é capaz de tirar o casaco do homem que passa. O vento sopra e sopra, e o homem estremece e se abriga ainda mais para proteger-se do frio. Então o sol brilha, e o homem, suado, tira o casaco.

Timothy Garton Ash é professor de Estudos Europeus na Universidade de Oxford, onde coordena o projeto freespeechdebate.com, e é pesquisador titular do Instituto Hoover da Universidade Stanford. Seu livro mais recente: Os Fatos São Subversivos: Escritos Políticos para Uma Década sem Nome (Taurus).

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