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A OTAN busca uma missão

Obama pedirá apoio dos seus aliados nos bombardeios do Iraque durante o encontro Síria, Líbia e Rússia são temas pendentes

Lucía Abellán
Um grupo da Marinha espanhola.
Um grupo da Marinha espanhola.Uly Martin

O pessoal da OTAN dispõe de dois computadores para realizar seu trabalho. Um deles é convencional, para gerenciar o que a maior organização político-militar do mundo chama de informação não-classificada. Um aviso colado a esses aparelhos adverte que o seu conteúdo não é protegido pelo sigilo da OTAN. O outro computador é mais delicado: sem conexão à Internet, possui uma rede própria, na qual circula informação secreta das operações da organização. A dupla ferramenta de trabalho é apenas uma das muitas peculiaridades da sede da OTAN em Bruxelas, um edifício concebido em 1967 como sede provisória e que só agora, em 2016, será substituído por uma nova sede. A mudança de quartel-general não é a única que a organização terá de enfrentar nos próximos meses. O fim da missão no Afeganistão, a maior já feita pela OTAN, a volta da Rússia como adversário e novas ameaças como o jihadismo obrigam a redefinir o papel desta organização para o século XXI.

A segurança é a marca registrada do gigantesco complexo da OTAN, com regras próximas da ficção: as reuniões de altos dirigentes políticos e militares da organização são realizadas em um piso nobre do edifício, em salas sem luz natural nem celulares (nem mesmo desligados) para preservar a máxima confidencialidade das negociações. E no fim do dia, ninguém pode deixar papéis sobre a mesa; devem ser guardados a chave. Mas, além de manter o sigilo, a organização deve formular novos métodos para vencer nos novos conflitos, distantes das guerras clássicas para as quais a OTAN tinha se preparado.

Barack Obama pedirá a seus aliados apoio ao bombardeio no Iraque, um vespeiro no qual a OTAN receia intervir

Um desses desafios que a organização hesita em aceitar é a convulsão no Oriente Médio, onde o jihadismo se apresenta como a maior ameaça tanto para a região, como para o Ocidente. Os chefes de Estado ou de Governo dos 28 países aliados deverão tratar dos problemas do Iraque, da Síria e da Líbia em um jantar no dia 4 de setembro, o primeiro dia da cúpula que a OTAN realiza em Cardiff (País de Gales). Nessa reunião, o presidente Barack Obama pretende pedir apoio – político e, talvez, prático – aos bombardeios no Iraque, um vespeiro no qual a OTAN hesita intervir, segundo fontes diplomáticas.

Os aliados darão a Obama ese respaldo político, embora seja pouco provável que, além de colaboração de algum parceiros, a OTAN se envolva militarmente. A intervenção na Líbia em 2011 – país agora mergulhado no caos – deixou pouca vontade de voltar a aproximar-se da região, uma atitude evidente desde o início da guerra na Síria, onde a organização se recusou a se envolver.

Interessará mais aos aliados falar do confronto com a Rússia. Embora essa crise represente um retorno às origens da organização, fundada em 1949 para proteger o Ocidente do bloco comunista, a briga pela Ucrânia também força a renovar as estratégias. “Não haverá guerras clássicas com colunas de tanques que vão de uma cidade a outra. São guerras híbridas, que incluem ataques cibernéticos, grupos insurgentes com estrutura militar, mas que não são exércitos ... Na Ucrânia fica evidente que há uma guerra de propaganda”, afirma uma fonte aliada. Os recursos orçamentários para enfrentar todos esses desafios, que a organização abordará na próxima semana em Cardiff, estão minguando, uma carência que também está presente nas discussões.

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Depois de muitos anos centrada em missões além das suas fronteiras (Kosovo, Afeganistão, Líbia ...), a briga com a Rússia reavivou um órgão cuja função gera dúvidas depois do fim da Guerra Fria. Mas seus membros estão cientes de que Moscou não é a única – nem provavelmente a maior – ameaça mais à segurança global. “Hoje temos um ambiente de ameaças múltiplas. É ilusório pensar que a solução de um problema resolverá os outros. Temos de equilibrar nossos esforços, desenvolver a solidariedade entre os membros. No passado, os europeus costumavam olhar para os Estados Unidos para ver que passos estavam dando. Mas a crise na Ucrânia foi um sinal de alerta para a Europa. Precisamos desenvolver um maior sentido de dissuasão, não tanto o chamado soft power exercido até agora”, explica Jamie Shea, um dos assessores do Secretário-Geral da OTAN para os desafios de segurança.

A relevância da Ucrânia na cúpula de 4 e 5 de setembro reflete-se no convidado especial dos chefes de Estado e de Governo: o presidente ucraniano, Petro Poroshenko. Os líderes oferecerão a ele maior cooperação financeira e assessoria militar sem violar o compromisso de não fornecer armas a esse país.

Essa aproximação de Kiev é acompanhada de um afastamento de Moscou. Uma dos principais assuntos que os mandatários aliados terão de decidir será a relação que querem ter a partir de agora com a Rússia. Após a queda do Muro de Berlim, a OTAN desenvolveu uma política de aproximação com Moscou, que em 1997 se tornou um parceiro essencial da organização, com estatuto especial. A frustração de quem viu todo esse trabalho evaporar com a crise ucraniana é evidente. “Trabalhamos arduamente para atraí-los para a nossa visão de mundo e tínhamos avançado tanto... agora tudo foi por água abaixo. Tínhamos uma relação única com a Rússia que nunca mais recuperaremos”, lamenta uma fonte da OTAN envolvida na cooperação com Moscou.

Tínhamos uma relação única com a Rússia que nunca mais recuperaremos", lamenta uma fonte da OTAN

Embora seja muito improvável que os Estados aliados decidam em Cardiff suspender o conselho bilateral que mantêm com a Rússia, a organização admite que, hoje, esse diálogo é inexistente. “Hoje em dia diz-se que todas as decisões já estão tomadas, exceto as relativas à Rússia, o que indica que é o tema mais quente da cúpula. Será preciso encontrar um equilíbrio para condenar duramente a atitude da Rússia, sem romper as relações institucionais “, sugere Claudia Major, pesquisadora do Instituto Alemão de Assuntos Internacionais e de Segurança (SWP, na sigla em alemão).

O vai prosperar é o reforço da presença da OTAN no leste europeu, uma ideia polêmica porque tange os acordos assinados com a Rússia em 1997, que excluíam bases permanentes nos antigos países comunistas. Para aumentar o peso sem violar esses compromissos, o secretário-geral da OTAN, Anders Fogh Rasmussen, sugeriu esta semana a vários jornais, incluindo o EL PAÍS, o estabelecimento de tropas semipermanentes – ou seja, mobilizações rotativas para realizar manobras – que deem maior segurança ao flanco oriental. Alguns dos países que sofreram a dominação de Moscou agora sentem sua ameaça, depois do apoio dado pelo presidente russo, Vladimir Putin à rebelião nas regiões de língua russa da Ucrânia.

Com todos esses desafios na mesa, os dirigentes da Aliança Atlântica estão conscientes de que, para manter a credibilidade da organização, é preciso investir em defesa. A maioria dos membros da OTAN nunca cumpriu o compromisso de destinar 2% do Produto Interno Bruto (PIB) para os gastos militares, uma meta ainda mais distante com a crise econômica. Apenas os Estados Unidos, que duplica a meta, o Reino Unido, a Grécia e a Estônia superam o nível. A cúpula tentará estabelecer metas e ligá-los ao crescimento econômico em cada país, embora seja difícil para os países assumirem compromissos rigorosos em tempos de austeridade. Além do volume de investimento, os especialistas da Aliança pedem qualidade nos gastos: que pelo menos 20% sejam destinados a equipamentos e tecnologia, em vez de salários e pensões. Só França, Estados Unidos, Reino Unido e Turquia superam essa meta.

“A OTAN é como seguro de vida: tomara que nunca precise usar, mas é preciso ter. Seu sentido é a dissuasão. O problema é que perdeu muita credibilidade com a redução dos investimentos militares. Essa discussão é fundamental. E se não chegarem a um acordo sobre os 2% de investimento, deveriam pelo menos concordar em não ficar abaixo de 1%”, sugere Borja Lasheras, do European Council on Foreign Relations [Conselho Europeu de Relações Exteriores], um think tank europeu. Ian Anthony, diretor do Instituto de estudos para a paz SIPRI, com sede em Estocolmo, é ainda mais cético: “Esse objetivo foi definido muitas vezes e nunca foi cumprido. Na prática, seria mais crível decidir, pelo menos, não cortar ainda mais o orçamento de defesa”.

Os dados são inequívocos. Embora os Estados Unidos sozinhos tenham menos riqueza do que os outros 27 membros da Aliança juntos, seu gasto em defesa representa 73% do total. E do investimento desses 27 estados, metade vem de apenas três países: França, Alemanha e Reino Unido. Washington acredita que chegou a hora de acabar com essa supremacia norte-americana e pressiona fortemente para que outros Estados assumam sua responsabilidade.

O elemento que marcará mais claramente uma nova era na OTAN será o fim da missão no Afeganistão, que termina em dezembro deste ano, sem que esteja claro o contingente da Aliança que permanecerá no país para garantir uma transição suave para um novo comando militar, inteiramente afegão. A intenção é manter uma missão de dois anos, mas tudo deve ser acordado com os novos governantes do Afeganistão, a serem definidos nas eleições presidenciais de junho último.

A grande operação de combate no Afeganistão, um contingente de 44 mil soldados enviados por 48 países, será o principal legado de Rasmussen, que dirige a organização desde 2009 e passará o cargo para o norueguês Jens Stoltenberg, em outubro. Com o encontro de Cardiff, sua última cúpula, Rasmussen encerrará um ciclo que começou com um discurso de aproximação a Putin e termina com palavras pesadas contra um dirigente que, em sua opinião, “deixou de considerar a OTAN como um aliado”.

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