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Uma juíza pune o médico suspeito de roubar uma criança na ditadura argentina

O nome do profissional, que trabalhava na Polícia de Buenos Aires, está na certidão de nascimento como ajudante do parto do neto da presidenta da associação Avós da Praça de Maio

Ignacio Hurban e Estela de Carlotto, no dia 8.
Ignacio Hurban e Estela de Carlotto, no dia 8.Natacha Pisarenko (AP)

A juíza argentina María Romilda Servini de Cubría, a mesma que julga os crimes da ditadura franquista, proibiu nesta terça-feira um médico de 74 anos, que trabalhava na Polícia de Buenos Aires, de sair do país por sua suposta vinculação com o roubo do neto da presidenta das Avós da Praça de Maio, Estela Barnes Carlotto, segundo informações do jornal Página/12. O nome do médico, Julio Sacher, que atende pacientes em seu consultório particular, consta na certidão de nascimento do então chamado Ignacio Hurban, agora identificado como Ignacio Guido Montoya Carlotto. Esse documento informava que Sacher teria ajudado no parto de Ignacio na cidade de Olavarría (a 308 quilômetros de Buenos Aires), na casa do latifundiário Carlos Francisco Aguilar, e que o menino era filho biológico de dois trabalhadores rurais, Clemente Hurban e Juana Rodríguez, empregados que viviam nas terras desse fazendeiro.

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Na verdade, Ignacio nasceu no hospital militar de Buenos Aires ou no centro clandestino de detenção La Cancha, em La Plata, onde estava presa sua mãe verdadeira, Laura Carlotto, filha desaparecida da líder das Avós da Praça de Maio, segundo diversos depoimentos de pessoas que foram presas durante a última ditadura militar da Argentina (1976-1983). Seu pai se chamava Wilmar Montoya, também desaparecido. A certidão de nascimento diz que Ignacio teria nascido em 2 de junho de 1978, mas supõe-se que Laura Carlotto teria dado à luz no dia 26 daquele mês. Dois dias depois, a certidão em questão foi lavrada.

O latifundiário Aguilar, parente de militares, faleceu em março passado. Três meses depois, Ignacio comemorava seu suposto aniversário, quando descobriu que era adotado. “O segredo de sua história era guardado fielmente depois do que teria sido um pedido de Aguilar: até depois de sua morte, ninguém poderia saber”, escreveram as jornalistas Claudia Rafael e Silvana Melo, em uma investigação publicada neste domingo pelo jornal Miradas al Sur.

O advogado do médico disse que na certidão não consta a assinatura de seu cliente; no lugar, está a do agricultor que criou o jovem

O médico Sacher, por sua vez, suspendeu as consultas em Olavarría desde que a verdadeira identidade de Ignacio foi revelada há duas semanas. No mês passado, Ignacio procurou a associação Avós da Praça de Maio para fazer as análises de DNA, diante da suspeita de que poderia ser um dos 500 bebês de filhos de mulheres desaparecidas, roubados pelo regime militar. Mas o advogado de Sacher já se apresentou diante do tribunal de Servini para defender a suposta inocência de seu cliente, segundo o Página/12. Acontece que na certidão de nascimento consta seu nome, mas não sua assinatura. Outra certidão do parto na qual poderia constar seu nome foi extraviada junto com outros tantos documentos oficiais em uma inundação ocorrida em Olavarría em 1980.

Clemente Hurban assinou aquela certidão de nascimento que agora foi constatada como falsa. É provável que a justiça o intime para prestar depoimento por ter se apropriado do menino, já que ratificou com sua rubrica que Ignacio era seu filho biológico. Estela de Carlotto disse ao EL PAÍS que “qualquer um que registra como filho próprio um filho que não é seu está cometendo um delito” e há muitos que acabaram na prisão por isso, dentre os 114 casos de netos recuperados até agora. Mas a presidenta das Avós da Praça de Maio esclareceu que o roubo de Ignacio pode ter “atenuantes” devido à “cultura” de Clemente Hurban ou a relação com seu “patrão” Aguilar.

“Não quero que sofram nem que passem por demasiados traumas, apesar de que vão ter que prestar declarações e participar de todo o processo de esclarecimento”, disse Ignacio em referência aos seus supostos pais em uma entrevista ao diário El Popular, de Olavarría, uma cidade de 89.000 habitantes que vive da agricultura, das indústrias de cimentos e têxtil. Ignacio acrescentou: “Em Olavarría há pessoas que vão ter que dar muitas explicações. É uma cidade que se caracterizou em grande medida por fazer vista grossa a essas situações relacionadas com a ditadura. Não há apenas uma responsabilidade militar, mas também uma grande responsabilidade civil”.

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