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A ajuda humanitária pede socorro

Em um só ano os ataques a pessoal de emergências em todo o mundo dobraram, devido ao número maior de conflitos complexos com múltiplos participantes

Alejandra Agudo
Um menino amputado em seu leito no hospital de Jacmel, no Haiti. Ele é uma das muitas vítimas do terremoto que devastou o Haiti em 12 de janeiro de 2010.
Um menino amputado em seu leito no hospital de Jacmel, no Haiti. Ele é uma das muitas vítimas do terremoto que devastou o Haiti em 12 de janeiro de 2010.ONU

“Se uma pessoa armada tentar enfiá-lo num carro, você precisa tentar escapar de qualquer maneira. E correr em ziguezague para que as balas não o atinjam. Dificulte as coisas para eles.” María Fuentenebro agradeceu a teoria aprendida nos cursos de segurança para pessoal humanitário quando salvou sua vida na Guatemala, em 5 de março de 2008, num ataque como o descrito. Na época ela era funcionária do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). “Não esqueço essa data”, ela diz, quase sussurrando, falando ao telefone desde o escritório em Nova York onde hoje trabalha para a consolidação da paz, o acesso humanitário e a coordenação cívico-militar do Programa Mundial de Alimentos. Ela saiu ilesa. Mas outros não conseguem esquivar-se do perigo.

A eles, às vítimas, é dedicado o Dia Mundial da Assistência Humanitária, celebrado todo ano em 19 de agosto. A data recorda o ataque de 2003 à sede da ONU em Bagdá em que morreram 22 funcionários da organização. No ano passado, 155 trabalhadores em missões humanitárias foram assassinados, 171 foram feridos gravemente e 134 foram sequestrados. Ao todo, 460 vítimas em 251 incidentes violentos. É quase o dobro do número de 2012, quando ouve 277 afetados em 170 ataques, segundo cifras da Aid Worker Security Database.

Fonte: Aid Worker Security Database.
Fonte: Aid Worker Security Database.

“Um deles era meu amigo”, diz Ghislain-Serge Koliatene. Esse técnico de laboratório de 37 anos que desde 2006 trabalha para a organização Médicos Sem Fronteiras na República Centro-Africana recorda com tristeza o dia em que um grupo de violentos entrou no hospital de Boguila e matou a tiros três companheiros seus da ONG e outros 13 civis. No dia 26 de abril de 2014, os civis, doentes e profissionais médicos eram os alvos do ataque, e Koliatene estava ali. “Até então, eu nunca tinha tido medo ou me sentido em perigo em função de meu trabalho”, ele conta. “Depois disso, não pensei em deixar de trabalhar para a MSF, mas refleti sobre os riscos que isso encerra e se queria continuar a corrê-los.” Ele acabou por concluir que qualquer pessoa em seu país está exposta ao risco de morte devido aos combates e às doenças incuráveis devido à falta de medicamentos e assistência de saúde. “Decidi continuar com meu trabalho para ajudar meus compatriotas. Sem a MSF, eles não teriam acesso a atendimento médico.”

A discussão sobre onde traçar a divisão entre ajudar a outros e colocar a própria vida em risco está longe de encerrada. As ONG seguem uma linha clara no papel: em primeiro lugar vem a segurança de seus funcionários, que devem estar formados e preparados para enfrentar situações de perigo de todos os tipos. Assim, o aumento de ataques e vítimas não se deve a qualquer relaxamento no cumprimento das normas das organizações que atuam em contextos de risco, diz Abby Stoddard, membro da Aid Worker Security e do comitê de direção da Médicos do Mundo-Estados Unidos. Na opinião dela, a causa principal é a maior complexidade e intensidade dos conflitos em curso hoje. “As operações de ajuda humanitária são alvos fáceis e acessíveis, tanto para milícias quanto para criminosos comuns”, explica.

“Será que a minha vida vai terminar assim?”

Em 26 de abril de 2014, o hospital de Boguila (República Centro-Africana) deixou de ser o lugar onde a parteira Gladice Nelly Aymare Mboka, de 35 anos, vivia a felicidade de ajudar a trazer novas vidas ao mundo. Nesse dia, um grupo de pessoas armadas entrou no centro de saúde e atirou em pacientes e profissionais médicos. Três funcionários da organização Médicos Sem Fronteiras, colegas de Nelly, foram assassinados.

Nesse momento ela estava descansando na casa da equipe médica, ao lado do hospital. Este é seu relato:

“Ouvi tiros. Não conseguimos chegar à sala de segurança para buscar refúgio. Os disparos estavam cada vez mais fortes, e fiquei tão assustada que pensei: ‘Será que minha vida vai terminar assim?’. Falei isso a meus colegas, que se arrastaram no chão para chegar até o banheiro, onde ficamos escondidos, agachados, durante 54 minutos.

Depois que tudo ficou em silêncio, fomos ao hospital, onde nos informaram da morte de nossos companheiros. Quando entrei nas salas de internação, uma enfermeira me chamou, chorando, para ir com ela até a área de consultas externas para identificar as vítimas. Ali encontramos três pessoas com vida e as levamos até o setor de urgências, em estado grave.

Apesar do medo, estou me sentindo bem outra vez com meu trabalho de parteira em colaboração com a MSF e seu projeto na República Centro-Africana para ajudar pessoas em perigo, prestando assistência de saúde a elas.”

Mas ela acrescenta que as organizações precisam de novas ideias e mais apoio para poder cuidar melhor da segurança de seus funcionários. “Muitos trabalhadores humanitários são atacados enquanto estão em trânsito, na estrada. Mais que em qualquer outro lugar. Mas, para realizar seu trabalho, eles são obrigados a fazer traslados, e a inovação nos métodos para reduzir essa vulnerabilidade vem sendo muito limitada. Os governos doadores fariam bem em apoiar as entidades que prestam assistência em sua busca por novos enfoques estratégicos sobre como garantir seus movimentos e a criação de corredores seguros”, Stoddard reivindica.

De fato, 51% dos ataques acontecem nas estradas. Mohammad al-Abadlah, paramédico de 32 anos que trabalhava para a Sociedade Palestina do Crescente Vermelho, foi vítima de um deles. Morreu no último 25 de julho ao ser baleado enquanto viajava de ambulância para dar assistência a um homem ferido numa área da Faixa de Gaza controlada pelo exército israelense.

A Anistia Internacional (AI) colheu o depoimento sobre o que aconteceu de Hassan al-Attal, companheiro de al-Abadlah na ONG e também vítima do ataque. Ele fez a seguinte descrição: “Naquele dia fomos encarregados de dar assistência a um homem ferido em Qarara. Informávamos cada detalhe à Cruz Vermelha, constantemente, como sempre fazemos quando entramos numa área controlada pelos militares israelenses. Foi o que fizemos quando nosso caminho foi barrado porque havia cabos de eletricidade sobre a estrada. Eles [a equipe da Cruz Vermelha] ligaram para os israelenses para relatar a situação, e finalmente nos responderam que o Exército ordenava que saíssemos do veículo e andássemos a pé com as luzes de emergência. Andamos 10 ou 12 metros e, de repente, atiraram em nós. Meu colega gritou “me acertaram!”. Saí correndo de volta à ambulância. Havia tiros por todo lado.”

Esse foi apenas um dos vários episódios violentos que vitimaram funcionários do Crescente Vermelho Palestino desde que começou a mais recente escalada de violência na Faixa de Gaza. De acordo com a AI, vários funcionários da organização já foram assassinados.

O Oriente Médio é uma área negra no mapa de ataques contra funcionários humanitários. Isso é algo que Karl Schembri, responsável pela comunicação da entidade Save the Children na região, sabe muito bem. “Os conflitos são muitos. E ocorrem situações imprevisíveis, em que você não sabe o que vai acontecer a seguir. Nessa hora, a única coisa que você pode fazer é ficar calmo e pensar na razão pela qual está ali: para ajudar. Em última instância, é nesses contextos em que é tão difícil e perigoso levar ajuda que a ajuda é mais necessária, porque ela fornece o mais básico à população”, ele explica, falando ao telefone desde a Jordânia. “Para não nos convertermos em um problema adicional, em uma vítima a mais, temos medidas de segurança fortes. Mas sem deixar que o medo nos paralise, porque, se isso acontecesse, não faríamos nosso trabalho.”

Mas a experiência demonstra que não bastam medidas de segurança para evitar as agressões. O respeito dos adversários em um conflito pelos humanitaristas que ajudam a população civil é crucial. E esse respeito não existe mais. Os especialistas coincidem em relação a isso. “Pudemos vê-lo em Gaza, onde não foram respeitadas as normas internacionais relativas à ajuda humanitária. Foram bombardeadas escolas da ONU e obras de infraestrutura básica”, Schembri lamenta.

Karl Schembri, responsável pela comunicação da Save the Children no Oriente Médio.
Karl Schembri, responsável pela comunicação da Save the Children no Oriente Médio.Hedinn Halldorsson (STC)

María Fuentenebro, do Programa Mundial de Alimentos, destaca que as organizações também precisam respeitar os princípios básicos da assistência: humanidade (salvar vidas, ajudar), neutralidade (não tomar partido), imparcialidade (não discriminar) e independência operacional (não ter objetivos políticos). Isso não vem sendo cumprido? Na opinião dela, não inteiramente. E, de novo, Gaza é o exemplo. É o que pensa Olivié Longué, presidente da Ação Contra a Fome e secretário da Coordenadoria de ONGs para o Desenvolvimento (CONGDE). “A comunicação que está sendo feita por parte das organizações é claramente pró-palestina. O risco de se indignar é que você deixa de ser neutro”, ele considera.

Neste momento, por razões várias, a Faixa de Gaza é sem dúvida território hostil para os funcionários de ONGs e de agências da ONU. Mesmo assim, em 2013 os países onde ocorreram mais ataques a humanitaristas foram, nesta ordem, Afeganistão (81 vítimas), Síria (43), Sudão do Sul (35), Paquistão (16), Sudão (16) e Somália (8), segundo dados da Aid Worker Security Database.

Crispen Rukasha, responsável pelo Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), trabalha para a Aid Worker Security Database. Ele sente que está sob a mira do Al Shabaab, grupo extremista islâmico na Somália. “Eles já deixaram claro que todos os funcionários da ONU e das ONGs estamos entre seus alvos”, ele diz em ligação que atende em Mogadício. Essa espada de Dâmocles dificulta seu trabalho para ajudar as pessoas necessitadas. E estas são em número cada vez maior. “A crise humanitária está indo de mal a pior, e não podemos chegar a certas áreas que precisam de assistência. Em 2011 já houve fome generalizada em algumas áreas, e agora, com a seca e o conflito flagelando a população, isso vai se repetir, porque se as pessoas não podem plantar e ainda por cima não chove, elas não terão alimentos. Tentamos fazer o melhor que podemos, porque vemos as pessoas sofrendo, passando fome, morrendo.” A sensação de impotência é perceptível desde o outro lado da linha. “Você precisa estar mentalmente preparado para ver isso.”

Uma somali leva seu filho com desnutrição aguda ao funcionário médico da Missão da União Africana na Somália (AMISOM).
Uma somali leva seu filho com desnutrição aguda ao funcionário médico da Missão da União Africana na Somália (AMISOM).Stuart Price (ONU)

Para a ONU, trabalhadores como Rukasha, Schembri, Mohammad Al-Abadlah ou Koliatene são “heróis” que, pelo menos por um dia, deixam de ser um número anônimo e frio. Foi o que a organização quis destacar na campanha que lançou para lembrar este Dia Mundial da Assistência Humanitária 2014, para homenagear os milhares de pessoas “que enfrentam o perigo e a adversidade para ajudar outras pessoas”. Ao todo, a organização ALNAP (Active Learning Network for Accountability and Performance) calcula que existem no mundo 210.000 trabalhadores humanitários da ONU e outras agências. É um “exército” formado não apenas por profissionais de saúde, mas também por pilotos, engenheiros, bombeiros e outros. “Mais necessário que nunca”, segundo a ONU. O slogan é O mundo precisa de mais #HumanitarianHeroes.

Marysia Zapasnik não se sente uma heroína. Pelo menos, não mais que uma pessoa que ajuda alguém mais velho a carregar as sacolas de compras para casa. “Essa é nossa profissão, e nos pagam pelo que fazemos. Não somos santos, apenas queremos fazer uma diferença.” Ela o diz por e-mail enviado de um país onde, no ano passado, 35 funcionários de ONGs sofreram agressões graves, desde assassinatos até sequestros. Zapasnik trabalha no Sudão do Sul, no programa Mine Action, cujo objetivo é livrar o país de minas terrestres e reduzir, através de uma campanha informativa, o número de vítimas da detonação involuntária desses artefatos.

Mas ela reconhece que sua profissão envolve perigos e dificuldades que não existem em outras. “É claro que há muitos desafios. Cada dia é difícil. Dedicar-se a este trabalho significa, em muitos casos, estar longe de casa, em condições difíceis, às vezes arriscando sua vida. E nos perguntamos se vale a pena.” Qual é a resposta? “Se posso ajudar os mais pobres e vulneráveis do mundo, é claro que vale a pena”, ela responde sem hesitar. “Você acaba por se acostumar às adversidades, às frustrações e aos medos. Cada um encontra sua fórmula para administrar seu estresse.”

Meu sonho é perder meu trabalho porque ele terá se tornado desnecessário”, Antonio Salort (PMA)

Superar as adversidades é imprescindível para poder cumprir o objetivo: salvar vidas em situações de emergência. Nem as reivindicações políticas, nem solucionar conflitos é a missão dos humanitaristas, eles concluem. Mesmo depois de mitigar os efeitos devastadores sobre a população civil de uma guerra, um desastre natural ou uma crise alimentar, o trabalho não termina. Uma vez superada a urgência, a cooperação para o desenvolvimento deveria ajudar a estabilizar a recuperação dos países afetados. Olivié Longué assegura que os cortes na ajuda dada por países doadores – na Espanha, foram de 70% desde 2008 – fazem com que situações que poderiam ser mantidas “sob controle” se convertam em crises humanitárias crônicas. É o caso do Sudão do Sul, observa o presidente da Ação Contra a Fome. Ali, onde Zapasnik procura conseguir que civis não terminem desmembrados por uma bomba esquecida em um caminho, a população está à beira de uma fome generalizada que ameaça matar milhares de pessoas. “Isso poderia ter sido evitado com projetos de água e saneamento, entre outros. Mas muita gente vai morrer. É um exemplo claro de abandono da ajuda internacional cujo custo humano será imenso”, denuncia a funcionária.

Apesar de tudo, a luta contra a fome, a pobreza extrema, a mortalidade infantil e materna e outros males faz parte da agenda internacional de desenvolvimento. Os “soldados” que combatem esses males são os homenageados desta terça-feira. Antonio Salort, responsável em Madri pelo Programa Mundial de Alimentos, acha que “estes heróis que arriscam suas vidas” numa batalha diária invisível serão os vencedores: “Sou otimista e acredito firmemente que a fome tem solução. Meu sonho é um dia perder meu trabalho porque ele terá se tornado desnecessário. Embora soe utópico, é possível.”

Mensagem do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, sobre o Dia Internacional da Assistência Humanitária.

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