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O pânico com o ebola esvazia o hospital da área mais afetada de Serra Leoa

O centro médico de Kenema deveria estar cheio de pacientes. Mas tonou-se um edifício fantasma

José Naranjo
Uma mulher é atendida em Kenema.
Uma mulher é atendida em Kenema.HANDOUT (REUTERS)

É como se estivesse programado em alguma engrenagem oculta na Torre do Relógio da entrada de Kenema. Todos os dias, às seis da tarde, o céu se rasga e cai um tremendo aguaceiro. Os buracos que adornam a estrada larga que divide em duas metades esta cidade se convertem em poças traiçoeiras, e as pessoas que poucos minutos antes ocupavam todo cenário desaparecem por obra de magia em qualquer refúgio improvisado, esperando que pare de chover.

Com seus 200.000 habitantes, este cruzamento de caminhos, outrora transbordante de traficantes de diamantes e caçadores de ouro, hoje definha entre o pânico com o ebola, que se amplia, invisível e implacável, como uma letal mancha de óleo, e a quarentena à qual a cidade foi submetida pelo Governo, que a deixou isolada do restante de Serra Leoa. Como se o vírus já fosse pouco castigo, Kenema, um dos principais e mais ativos focos da pior epidemia de ebola que já existiu, tornou-se a capital do Proibido Tocar e, como cada dia a partir das seis da tarde, faz o que pode para resistir até que a epidemia pare.

O epicentro do terremoto invisível que sacode Kenema é o hospital. Lá, um enorme cartaz com a imagem do doutor Umar Khan recebe os visitantes. Abaixo de seu rosto, a palavra "herói", em letras bem grandes. Khan trabalhava neste centro e era o maior especialista em lassa, uma febre hemorrágica muito ativa nesta zona. Quando irrompeu o vírus do ebola, todos os olhares se voltaram para ele que, longe de se esconder, colocou as mãos à obra, liderando a resposta nacional frente a esta nova ameaça. Mas não estavam preparados e não sabiam como fazer. A princípio foram um punhado de casos, mas em poucos dias eram 20, depois 30. Os trabalhadores, cada vez mais cansados, submetidos a mais pressão, cometiam erros. E começaram a cair. Enfermeiras, médicos, duas dezenas no total, e depois o próprio Khan. Em apenas uma semana, o ebola levou quem mais havia feito esforços para combatê-lo.

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A mensagem era clara e potente. A enfermidade era tão real como letal. Já não havia nenhuma dúvida. E o hospital de Kenema começou a sofrer o estigma. Hoje, seus pavilhões estão quase vazios. De todos os serviços só estão ativos Maternidade e Pediatria. E sem gás total. Em plena época de chuvas, deveria haver dezenas de pacientes com malária. Mas não há. Nem eles nem boa parte dos funcionários. Desapareceram. Ninguém quer nem se aproximar dali. O centro de isolamento para o ebola montado no pátio gera medo e rejeição. Muitos doentes morrem em suas casas, atendidos por seus familiares porque têm pânico do hospital, o que acaba por estender ainda mais a epidemia. Aqueles que vagueiam entre os plásticos brancos que fazem a vez de paredes improvisadas estão ali porque não têm mais remédio. Ou por terem decido se arriscar. Nancy Djoko é a enfermeira chefe. "Nós vimos nossas companheiras morrerem sem poder fazer nada, claro que temos medo", diz, "mas estaremos aqui para o que Deus quiser".

Os especialistas dos Médicos sem Fronteiras e da OMS confirmam a evidência. Não estão sendo respeitadas as medidas mínimas de segurança e há uma alarmante falta de trabalhadores. Um círculo vicioso. Mais mortes, menos trabalhadores e mais pressão sobre os que ficam, o que gera novos descuidos e mais mortes ainda. "A segurança nestas epidemias é proporcionada 50% pelas instalações adequadas e 50% pelo fator humano", disse um especialista da OMS. Por isso, se trabalha a todo vapor para fechar as instalações e abrir um novo centro de isolamento no antigo bloco pós-operatório. Isso se conseguirem convencer todos os pedreiros, carpinteiros e eletricistas a não fugir, pressionados por suas famílias. "Minha mulher me disse para deixar este trabalho ou não vai mais dormir comigo", afirma Ismael, um jovem trabalhador, "mas quero terminar o que comecei". Outros já se foram, assustados pela proximidade do ebola.

Em Bolo, a poucos quilômetros do centro da cidade, há desfiladeiros e palmeiras em abundância. Campos de arroz se estendem de um lado a outro das estradas de terra. A paisagem é bonita, muito diferente do barulho e da confusão de Kenema. Ali, o curandeiro tradicional Obay Masana, um dos mais conhecidos dos arredores, se senta com parcimônia na porta de sua humilde casa construída com tijolos de barro. "Contra este mal não podemos fazer nada", diz, "desde que começou esta epidemia quando chega um paciente eu mando diretamente ao hospital para fazer o exame. Se não tem o mal, então eu trato".

A medicina tradicional tem uma importância enorme em Serra Leoa. É uma estrutura de saúde paralela à oficial, com a qual convive. Muitas pessoas recorrem primeiro ao curandeiro antes de irem ao centro médico, e confiam em sua experiência e em seu conhecimento das plantas. Masana mostra, orgulhoso, suas pomadas e infusões feitas a base de ervas que recolhe no bosque ou cultiva em uma pequena hora. "Nossa tarefa é afastar o demônio ou reconfortar os espíritos, mas o ebola não está a nosso alcance", finaliza.

E como se o vírus fosse pouca tragédia, na quarta-feira passada, o Governo decidiu fechar a sete chaves todas as estradas que cercam a cidade. O cordão sanitário, que afeta toda a Província Oriental, representa, de fato, que nenhum veículo pode entrar ou sair da cidade a menos que seja com trabalhadores da área médica ou de ONG ou as forças de segurança do Estado e militares. A única exceção passa por conseguir uma permissão especial do chefe da Polícia. Kenema, assim como a vizinha Kailahun, está isolada do resto do país. A medida gerou uma enorme inquietação. Os comerciantes, os que ficaram porque os libaneses já partiram há semanas, se perguntam o que farão agora. Os transportadores se preparam para um longo calvário. E a população em geral teme que os preços comecem a subir e que ocorra um desabastecimento. "Aqui vivemos o dia", explica uma vendedora de frutas bastante irritada. "Se não vendemos, não comemos".

A medida governamental veio acompanhada de um importante envio de tropas do Exército, que cada vez mais se faz presente em Kenema. "Para garantir que se cumpram as medidas adotadas, em especial a restrição de movimento", diz o Governo. Na verdade, parece que estão indo ver o que todos temem, se a escassez e o desabastecimento se transformarão em ira e a ira em violência. Kenema enterra seus mortos enrolados em sacos plásticos pretos impermeáveis a um ritmo de cinco ou seis a cada dia, e ninguém sabe, na realidade, até onde isso pode ir. Como se o Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago, tivesse saltado para a realidade, como se tivessem sido detidos em uma prisão da qual ninguém pode entrar ou sair, os habitantes deste cruzamento de caminhos enfrentam seus próprios medos. "Don't touch" é a expressão mais repetida. Não tocar.

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