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Seus personagens, minhas histórias

As editoras buscam fãs na Internet que reinventam suas obras favoritas

Alguns dos personagens protagonistas de fanfics, obra da ilustradora Stef Tastan.
Alguns dos personagens protagonistas de fanfics, obra da ilustradora Stef Tastan.

Edward Cullen, o casto e conservador vampiro de Crepúsculo, transformou-se em um multimilionário que gostava de sadomasoquismo na mente de E. L. James. A agora famosa autora de Cinquenta Tons de Cinza era uma admiradora mais da saga vampiresca que escreveu na Internet uma nova vida para seus personagens favoritos.

Como ela, milhões de seguidores de séries, livros, filmes ou gibis escrevem na Rede relatos com os personagens que lhes obcecam. São chamados de fanfictions (a ficção dos fãs) e apenas no site Fanfiction.net há mais de seis milhões delas: 700.000 são versões de Harry Potter, 200.000 de Crepúsculo. Ali, a Mulher Gato convive com o Batman e outros super-heróis em uma residência universitária. Dom Quixote perde a cabeça lendo romances de ficção científica e acredita que é um explorador espacial. Harry Potter e seu arquiinimigo Draco Malfoy mantêm uma relação amorosa….

Entre as fics —forma abreviada de fanfiction, assim como fanfic— tem de tudo: longas, curtas, bem e mal redigidas, interessantes e aborrecidas… A maioria é escrita e lida por mulheres. Os comentários das leitoras servem como guia para escolher uma narrativa nesta fábrica de histórias virtual. Também orientam as editoras, que cada vez mais prestam atenção nestas novas “zonas de pesca”. Cinquenta Tons de Cinza, O Inferno de Gabriel, O Sedutor ou A Submissasão alguns das fanfics que chegaram à Espanha em forma de livro, publicadas por editoras como Random House e Planeta.

O êxito de Cinquenta Tons de Cinza é extraordinário: cinco milhões de exemplares vendidos e um filme que estreará em fevereiro de 2015. E. L. James já tinha quase terminado de subir a segunda parte de Master of the Universe, nome original do romance na Internet, quando a pequena editora australiana The Writer’s Coffee Shop lhe propôs publicá-la junto com a primeira. Antes a fizeram mudar o título, o nome dos personagens, alguns detalhes como a cor dos olhos do protagonista e retirar a história da Web. O romance não demorou em figurar entre os 50 títulos mais vendidos da Amazon. Ali foi encontrado pela editora Grijalbo, da Random House. Ana Liarás, editora da obra em castelhano, afirma que antes da chegada do livro à Espanha já se falava dele.

No site Fanfiction.net há seis milhões de relatos, 200.000 apenas sobre ‘Crepúsculo’

O best-seller não é a única fanfic erótica de Crepúsculo que chegou às livrarias (as tramas picantes abundam, assim como os pseudônimos). No total há mais de 100 títulos publicados em papel, todos eles versões da história de amor entre Edward e Bella. Em The Office, Bella, a namorada humana do vampiro casto na obra original, é uma ambiciosa estagiária que mantém uma tórrida relação com Edward, um chefe que no começo não suporta. O romance chegou à Espanha em 2013, com o título de Beautiful Bastard. Un tipo odioso pelo selo Debols!llo, também da Random House. Antes de ser publicado, tinha dois milhões de visitas na Rede. Cristina Armiñana, sua editora, afirma que o setor presta cada vez mais atenção às histórias que nascem on line. A popularidade das fics é uma garantia na hora de publicá-las, principalmente agora que o mundo editorial não atravessa seu melhor momento. Se um relato tem sucesso na Internet, é possível que também tenha como romance. “O processo de paginação e revisão é um valor agregado, então devem ter maior acolhida”, observa Armiñana.

Depois de um duro dia de trabalho, Esther fecha as portas na empresa de carnes que dirige ao lado do marido. Chega a casa. Prepara o jantar. Cuida de seu quase recém-nascido. E quando todos estão dormindo, aproveita o silêncio e senta-se para escrever. “Primeiro a obrigação, depois o hobby”, diz a autora de Rendición, uma fic em que a tímida e desajeitada Bella encarna uma bailarina que apaixona o multimilionário Edward. Teve mais de 1,8 milhões de visitas. Esther, ou Partisan11, como se chama na Fanfiction.net, levou dois anos para escrever a narrativa de 680.000 palavras. Sem esperar nada em troca, apenas os comentários de suas leitoras. “Dediquei horas de sono para poder escrever”, conta.

O que leva essas pessoas a destinar tanto tempo a um hobby? “A vontade de mais”, repetem autoras e leitoras. Mais sobre a trama, mais sobre os protagonistas... “Há algo libertador em ler histórias sobre os personagens que a gente mais gosta”, diz Betzabeth, uma advogada venezuelana de 30 anos que escreveu 15 fics. A mais popular, Decisiones Incorrectas, acumula quase 13.000 comentários.

Essa interação é algo que as grandes editoras não têm. As autoras de fanfics sobem suas obras em capítulos, como um folhetim. Algumas leitoras se oferecem para traduzi-las a outros idiomas, outras para editá-las (as chamadas betas). Tudo sem receber pagamento. Fazem isso para compartilhar uma paixão que as obceca com pessoas que se sentem iguais a elas. Ana, uma galega de 28 anos, lê, escreve e edita relatos sob o pseudônimo de Ebrume. “Editar te permite ajudar sem te expor tanto como escrever”, diz.

Segundo uma editora, o setor agora presta mais atenção a essas histórias

Durante a espera entre um capítulo e o seguinte, os grupos de discussão na Internet se agitam. Criadoras e leitoras discutem sobre as histórias. As escritoras respondem os comentários de suas seguidoras e, às vezes, seguem seus conselhos para continuar a trama. Fóruns e webs não apenas fazem as vezes de biblioteca, mas também de salas de reunião. As participantes têm uma relação de igualdade. Muitas vezes ficam amigas. Algo difícil de conseguir com os escritores profissionais.

Mábel Montes, catalã de 39 anos, foi convencida por suas próprias leitoras a autoeditar Sucursal 312. Publicou o romance sob o título Yo también lo siento por meio da CreateSpace, uma ferramenta da Amazon. Inscrever-se, subir a obra, escolher o desenho da capa e do interior do livro. “É muito simples e não se gasta nada”, afirma Mábel, que está negociando com uma editora o futuro lançamento de seu romance. “Não imaginava isso quando escrevi minha primeira fic”, diz. Mas não é tão raro: Ana Liarás, da Grijalbo, afirma que, mesmo que não leia fics, examina livros autoeditados. “Há coisas muito interessantes”, conta.

Enquanto as obras existem apenas na Internet e gratuitamente, é suficiente um aviso no início do texto em que se deixa claro que os personagens pertencem a outra história anterior. Mas no momento em que a autora pretende lucrar com sua obra, tem de renunciar a seus adorados personagens originais. A Amazon, por meio da plataforma Kindle Works, encontrou uma solução: um acordo com a Warner Bros. Television para poder publicar histórias sobre as séries Gossip Girl, Pretty Little Liars e The Vampire Diaries, entre outras. As autoras recebem entre 20% e 30% dos lucros gerados por sua obra.

Betzabeth escreve desde que se entende por gente. “Sempre gostei de criar histórias e mergulhar nelas”, diz, “fazer isso de forma profissional seria maravilhoso”. Para escritoras como Betzabeth ou Esther, que desejam introduzir-se no mundo das obras originais, surgem alternativas à autoedição. A Big Bang Press é uma pequena editora fundada por cinco criadoras e leitoras de fics para abrir esse leque de oportunidades no Reino Unido e nos Estados Unidos. A ideia é buscar escritoras aclamadas de fanfics e propor que escrevam um relato original. Sem personagens conhecidos, nem histórias famosas. Apenas o nome da autora como aval. Já selecionaram três. “Em breve”, anuncia a página ao clicar sobre os futuros romances.

A autora e seus fiéis como garantia. É uma boa aposta. Essas fãs que se põem a escrever têm por sua vez fãs incondicionais nos fóruns onde os comentários são do tipo: “Não encontro palavras suficientes para abarcar o que a sua história representa, EXCELENTE, SOBERBA”. A pergunta é: elas serão capazes de levá-las ao papel? Rocío Varet, psicóloga de Huelva de 27 anos, tem todos os livros em espanhol que saíram a partir de fanfictions de Crepúsculo. “Sei que vou relê-los e por isso os compro”, diz. Entretanto, há algo que uma editora nunca lhe dará: “O melhor das fics é encontrar gente com quem falar sobre esses personagens”.

Leia mais em Verne.

Ficção em todos os suportes

O salto às páginas. Alem de Cinquenta Tons de Cinza, de E. L. James, em castelhano na editora Grijalbo, foram publicados em papel na Espanha alguns dos títulos de maior sucesso na Internet. El Infierno de Gabriel, El Éxtasis de Gabriel e La Redención de Gabriel (Planeta) são os títulos que formam a trilogia erótica criada por Sylvain Reynard, um dos poucos autores de narrativas sobre homens. A trilogia nasceu na Internet como La Universidad de Edward Masen e é uma história baseada nos personagens de Crepúsculo.Ajuste de cuentas, de Gabrielle Goldsby (Egalés) se chamava originalmente Paybacks. Este romance lésbico é baseado na série Xena: La Princesa Guerrera.El Seductor, de Alice Clayton, da editora DeBols!llo, tinha como título Edward Wallbanger antes de a autora ter decidido autoeditá-lo.

Os mais populares. O site Fanfiction.net tem mais de seis milhões de fics. Harry Potter, a saga para adolescentes da autora J. K. Rowling, é a ficção com maior número de versões, com 690.000 histórias que deram lugar a todo tipo de tramas: do futuro dos filhos do protagonista até um mundo sem magia.Naruto, a série japonesa, é a segunda no ranking, com 365.000 relatos. Tanto o mangá como o animê (animação japonesa) têm grande peso no mundo da fanfiction.A saga Crepúsculo conta com 216.000 fics. Mesmo que seja mais habitual encontrar Edward e Bella vivendo idílios de amor, também aqui prima a variedade. São abundantes as histórias protagonizadas por Bella e Jacob ou por Bella e Alice.

Fics em todas as artes. A ideia de revirar as histórias mais populares se estende por todas as artes. Há criadores de Fanfilms, ou seja, produções audiovisuais baseadas em livros, filmes e séries. A Internet também está cheia de ilustradores que imaginam seus personagens preferidos e os retratam em Fanarts. Como no desenho acima, em que a publicitária costarriquenha Stef Tastan transmite sua particular visão do Quixote. "Minha felicidade está nas séries de televisão, nos videogames, livros e filmes. Agora, Game of Thrones me deixou louca. Adoro me conectar e compartilhar minhas ideias com as pessoas".

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