_
_
_
_
_

Serra Leoa teme que o pior da epidemia ainda esteja por vir

Alguns doentes fogem depois do diagnóstico, lamenta uma enfermeira espanhola A imagem mais habitual é a dos baldes de água e dos cumprimentos de mão levantada

José Naranjo
Profissionais da saúde no hospital Connaught, em Freetown (Serra Leoa)
Profissionais da saúde no hospital Connaught, em Freetown (Serra Leoa)Youssouf Bah (AP)

Sob um céu plúmbeo, com ameaça de chuva, Freetown acorda como uma cidade fantasma. As ruas da capital de Serra Leoa estão vazias, exceto por alguns poucos pedestres solitários que perambulam aqui e acolá. Não se vê nem um só veículo particular. Apenas os carros das ONGs, dos serviços médicos e dos militares transitam a toda velocidade. O presidente de Serra Leoa, Ernest Bai Koroma, declarou a segunda-feira como “jornada de reflexão e oração” contra o vírus do ebola. E todos o levaram muito a sério. Este país vai adquirindo pouco a pouco consciência da ameaça a que enfrenta. Com 646 casos confirmados e 273 mortes pela doença no país desde abril, não é para menos.

Mais informações
Morre o responsável pela luta contra o ebola em Serra Leoa
O sacerdote espanhol em isolamento na Libéria tem ebola
EUA, Itália e Espanha desaconselham viajar aos países afetados
O medo do ebola alimenta a expansão do vírus na África

No aeroporto, um médico recebe todos os passageiros com um termômetro. Antes, é preciso lavar as mãos com água clorada. Essa é a imagem que mais se repete na cidade, baldes de água para lavar as mãos nas portas de bancos, lojas, repartições públicas e hotéis. E gente desinfetando-se com pequenas bombas de dispersão carregadas às costas. O medo não para de crescer. No último mês, foram detectados dez casos em Freetown, sendo que dois desses pacientes morreram, e as autoridades sanitárias temem que o pior ainda esteja por vir, que as cadeias de transmissão estejam ocultas e que mais casos sejam diagnosticados.

Mariama Fofana é das poucas que se atrevem a sair. “Ninguém diz as coisas como são, muita gente comenta que há casas inteiras de quarentena. Onde estão? Por que não informam bem?”, lamenta-se essa mulher de 43 anos. “Você pode estar falando com alguém e nem saber que está doente.” Nestes dias de ebola, há poucos apertos de mão em Serra Leoa, onde pouco a pouco vai se impondo a saudação com a mão erguida ou o choque de cotovelos, sobretudo entre profissionais da saúde. E o sistema de saúde se reorganiza lentamente para fazer frente a esse enorme desafio.

A morte por ebola de Umar Khan, o médico que estava à frente do atendimento às vítimas dessa doença, serviu de alerta para todos. A maior parte dos seus colegas no hospital de Kenema, no interior do país, onde a enfermidade campeia, abandonou seus postos de trabalho, temendo o mesmo destino de Khan. Uma equipe da Cruz Vermelha Internacional pousou nesta segunda-feira em Freetown com a intenção de partir na terça-feira para Kenema e lá montar um grande hospital específico para o ebola.

No bairro do Aberdeen, Umaru Mohamed desafia a “reflexão” ordenada pelo presidente e vende cartões de telefone. “Temos de viver, não dá para tudo parar por causa do ebola. Há algo que cheira mal em tudo isto, não acredito em tudo”, diz. Esse é o desafio das autoridades sanitárias: conscientizar as pessoas de que o ebola, que para muitos é algo ainda longínquo ou apenas visto nos jornais, é real e pode aparecer a qualquer momento. E, sobretudo, que ao menor sintoma é preciso ir ao hospital. “A maior parte da população vai ao médico tradicional, não confiam [nos hospitais]. Outros fogem quando já estão diagnosticados, o que agrava as coisas", conta a enfermeira espanhola Pino González, da entidade Médicos do Mundo, que está desenvolvendo um programa de sensibilização no interior do país.

Milhares de estrangeiros, incluindo funcionários de mineradoras e ONGs, já abandonaram o país; o movimento turístico despencou, e investidores cancelaram seus voos

Passada a “jornada de reflexão”, Freetown retomou lentamente seu ritmo cotidiano. Mas começam a ser notadas as outras consequências do ebola. Milhares de estrangeiros, incluindo funcionários de mineradoras e ONGs, já abandonaram o país. O movimento turístico despencou, e os investidores que previam chegar para desenvolver algum projeto cancelaram seus voos. “Há um redução geral da atividade, é incrível. Um exemplo: de mais de 100 suítes que há no hotel Radisson, só 17 estavam ocupadas nesta terça-feira. Os supermercados já estão notando certo problema de abastecimento. É um problema de confiança. Agora você diz Serra Leoa e a primeira coisa em que as pessoas pensam é no ebola”, afirma o empresário britânico John Silver, que, apesar dos pesares, resiste à frente de seus negócios.

Os controles militares salpicam todas as saídas da cidade e se intensificam à medida que se chega à zona quente, nos distritos de Kailahun e Kenema. A intenção é restringir a movimentação de pessoas, numa desesperada tentativa de conter a expansão do vírus. Mas não é simples. A população de Serra Leoa se move com intensidade e facilidade de um povoado a outro. Sempre foi assim. Inclusive além de suas fronteiras, na Guiné e na Libéria. Essas restrições começam a minar a economia e a confiança. Agora, os leoneses se sentem também encerrados por uma ameaça que nem todos chegam a ver ou entender.

Na porta de um conhecido hotel de Freetown, agora só ocupado por voluntários de uma ONG, perambula Angela, uma prostituta que oferece todo tipo de serviços a cinco dólares (11,40 reais). “E o que posso fazer? Nos últimos dias, quase não há turistas, e o ebola não dá de comer”, resmunga, entredentes.

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_