_
_
_
_
_
DA LAMA DAS TRINCHEIRAS

O trem que parou a matança

A história do vagão do armistício de 1918 em Compiègne que pôs fim a Primeira Guerra Mundial

Jacinto Antón
Assinatura do armistício (o original está na pasta nas mãos de Foch) em 11 de novembro de 1918 no vagão 2.419D.
Assinatura do armistício (o original está na pasta nas mãos de Foch) em 11 de novembro de 1918 no vagão 2.419D.

Os trens tiveram sua parcela de responsabilidade na Primeira Guerra Mundial: foram fundamentais na mobilização de tropas – um dos fatores que tornou o conflito imparável – e então continuaram levando carne de canhão fresca para as trincheiras. É curioso, portanto, que tenha sido em um trem que a guerra tenha acabado.

São muitos os trens famosos, o Transiberiano, o Orient Express, o de Pancho Villa ou o que atravessava a ponte sobre o rio Kwai. Mas seguramente nenhum de seus vagões foram tão importantes na história como o do trem do marechal Foch utilizado para a assinatura do armistício que pôs fim à grande carnificina da Grande Guerra. Neste vagão não foi dita a mítica frase “Mais madeira que é a guerra!” como o trem dos Irmãos Marx (onde esta tampouco era feita), muito pelo contrário.

Era 11 de novembro de 1918 e às 5 horas e 12 minutos da manhã os plenipotenciários aliados e alemães acertavam no vagão o silêncio das armas após 1.560 dias da pior guerra já vista pelo mundo. O armistício não entrou em vigor até as 11 horas, mas então deu lugar à uma imensa onda de alegria e alívio.

“Te escrevo com lágrimas nos olhos”, anotou um soldado francês expressando o sentimento de milhões. “Soube do fim das hostilidades, o final desta terrível guerra, o melhor dia da minha vida”. A história do ato da assinatura e a do vagão e seu estranho destino – Hitler voltou a utilizá-lo, como revanche, para outro armistício, o de 22 de junho de 1940, após vencer a França – merecem ser lembrados este ano no centenário do início da Grande Guerra.

Hitler voltou a utilizá-lo como revanche após sua vitória em 1940

Chovia a cântaros no dia anterior em Compiègne – como ocorria naquele 11 de novembro de 1918 – enquanto um grupo de visitantes abandonava pesaroso a segurança dos carros no estacionamento para adentrar os bosques a fim de chegar na zona em que seria celebrado o armistício. Era um inquieto e úmido aborrecimento, mas pensando bem, era uma boa maneira de lembrar a lama e a miséria das trincheiras. Isso foi sem dúvida relembrado intensamente por um português que tropeçou em uma cerca baixa de arame para cair com toda a sua humanidade no lamaçal, compondo uma imagem digna do ataque dos fuzileiros reais galeses em Passchendale.

Atravessamos a Clareira do Armistício, um grande círculo similar à praça l’Etoile de Paris, e seus monumentos, com a presteza de um avanço em descoberto para nos refugiar no museu. No interior do edifício, o visitante se encontra com um antigo vagão ornado de bandeiras francesas e ladeado por lanças com pendões. Pelas janelas pode-se ver uma mesa na qual são indicados os nomes e a situação dos assinantes do armistício. Apesar do impacto que provoca, não é o vagão real da assinatura. O vagão original, o número 2.419 D da Société des Wagons-Lits convertido em escritório móvel de Foch, foi destruído por um incêndio em outro bosque longínquo, o da Turíngia, para onde havia sido transportado desde Berlim após ser levado pelos alemães em 1940. De acordo com outra versão, foi destruído pelas SS por ordem de Hitler para evitar que voltasse a ser usado em outra rendição...

A extravagante escolha de um vagão e de um bosque em Compiègne em 1918 se explica pela vontade de Foch em assinar o armistício em um lugar discreto, longe dos olhares dos curiosos e da (merecida) animosidade que os franceses poderiam mostrar aos enviados alemães. O marechal Foch levou seu trem especial que utilizava com frequência como posto de comando para um discreto ramal ferroviário com duas vias paralelas que foram usadas para transportar artilharia para a frente do Oise. Em uma estacionou o trem do comandante em chefe aliado, com dez vagões, incluindo o já mencionado vagão-restaurante 2.419 D, e na outra o que levava os representantes alemães. Estes haviam realizado uma longa e perigosa (e melancólica) viagem: após cruzar as linhas em carros próprios foram transportados para automóveis franceses que os levaram até o trem colocado à sua disposição. Um trem com uma certa má fama, pois incluía o vagão-restaurante do imperador Napoleão III, uma mensagem implícita ao desastre de Sedan e uma sutil forma de revanche sobre a derrota de 1870.

Em 8 de novembro, o trem que leva os alemães se detém na via paralela à de Foch. Os quatro representantes do país derrotado descem e cruzam cabisbaixos os 60 metros que os separa do vagão 2.419 D. Ali se reúnem com a representação aliada e com o marechal que não se mostra particularmente simpático, para não dizer que é bastante rude. O general Weygand lê as duras condições do armistício: a retirada até o outro lado do Reno e a entrega de toda a frota e de numerosas armas. O secretário de Estado Ezberger fica indignado. O capitão de navio Von Vanselow – que fica sem embarcações – chora. Após três dias de reflexão em seu trem, consultas com seu Governo e a ameaça de Foch de atacar em Lorena, os alemães regressam ao vagão e assinam o que faltava. Foch se limita a dizer “muito bem”, e vai embora.

Ao assinar, o capitão Von Vanselow, que ficou sem navios, chorou

Durante anos o lugar permaneceu abandonado e o vagão da assinatura é exibido em Paris, no pátio dos Inválidos. Em 11 de novembro de 1922 é inaugurada a monumentalização do espaço. Os lugares nos quais os trens estacionaram ficam assinalados, é criada uma Via da Vitória e são instaladas várias obras comemorativas. Em 1927 o lugar é completado com a instalação do vagão e a construção de um museu para abrigá-lo.

Hitler, que considerava uma humilhação e uma provocação o desfecho de Compiègne, apareceu em pessoa, feliz e contente, em 21 de junho de 1940, na clareira do armistício, onde, além de enchê-lo de suásticas, fez colocar de novo o vagão – após retirá-lo do museu, que foi destruído – para que se assinasse a rendição francesa. Ordenou então que o vagão fosse levado para a Alemanha.

Com a libertação, as coisas voltaram a mudar. Foi celebrada uma “cerimônia de purificação”, foram reconstruídos os monumentos destruídos e edificado o museu atual, no qual foi instalado um vagão com a mesma série que o exilado e destruído. O lugar foi se enriquecendo desde então com outros monumentos e recordações, entre eles os restos do vagão original, com os corrimões, recuperados no lugar do incêndio na Alemanha. Além do vagão falso, é possível ver exposições sobre as duas guerras mundiais, com capacetes, armas, manequins em uniforme e uma infinidade de outros objetos, alguns tão apaixonantes como um fragmento da hélice do Vieux Charles – o avião Spad S VII do grande ás Georges Guynemer –, a flâmula do general Pershing ou o tinteiro de Foch!, que nestas alturas já deve estar seco.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_