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Flavio de Campos, sociólogo de esporte

“A humilhante derrota abre a caixa preta da sociedade brasileira”

Para o especialista em futebol, os 7X1 tem um papel didático, pois o Brasil começa a repensar a cruel necessidade de tratar a seleção brasileira como compensação para as suas frustrações

Carla Jiménez
Flavio de Campos, sociólogo estudioso do futebol
Flavio de Campos, sociólogo estudioso do futebolBosco Martín

Flávio de Campos era um dos 200 milhões de brasileiros que dormiram mal nesta quarta, tentando digerir a amarga derrota da seleção de Felipão para a Alemanha. Mas sua tristeza ia além do 7x1. A crueldade coletiva que se iniciou antes mesmo do final da partida no Mineirão foi um dos motivos da sua insônia. A crucificação dos jogadores que, segundo ele, são na verdade “uma bando de meninos”, quebra-quebra em algumas cidades e xingamentos à presidenta Dilma, enquanto o Brasil tomava a goleada, eram os sintomas do país órfão de outras alegrias que não o futebol. “A expectativa é que a seleção represente a nossa força, a virtude e a criatividade do país”, diz Campos, que coordena o Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre o Futebol (Ludens). “É perverso e cruel jogar a responsabilidade do nosso fracasso nas costas dos meninos”.

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Pergunta. Como você está digerindo a derrota assustadora contra a Alemanha?

Resposta. Tenho duas tristezas, dois sentimentos. Uma com o próprio resultado da partida. É evidente que a Alemanha era favorita, pelo jogo mais consistente e organizado. Eu achava que o Brasil ia perder. Mas sempre tem o imponderável no futebol, pois nem sempre o melhor vence. Sempre tem a trave, a zebra, o fio de esperança. Enfim, mas o que houve foi um massacre, um apagão que já vimos no Palmeiras, outro time dirigido pelo Felipão. Estamos com a sensação do nocaute. No box, o lutador vai à lona, e a luta termina. Aqui, não víamos a hora do jogo terminar.

P. E a outra tristeza?

R. Além de perceber a falta de competitividade com os alemães, foi o significado que o futebol tem como elemento de cultura brasileira. A humilhante derrota abre a caixa preta da sociedade. Vivemos no Brasil uma crise de representatividade, um momento em que nosso olhar coletivo é muito frustrante. A percepção é que o sistema político representativo não funciona. Alguns acham que tem de jogar tudo fora. Não é à toa que no primeiro ou no segundo tempo, quando [a torcida] xinga o Fred no campo, volta a xingar a Dilma [assim como na abertura da Copa, no dia 12 de junho]. E essa seleção, de meninos, é de uma crueldade. Nossa expectativa é que represente a força e as virtudes, a valentia, a habilidade, a criatividade, a beleza que nós não temos em outros espaços sociais. É uma espécie de compensação. E nós jogamos para a seleção uma espécie de expectativa de remédio, de solução para coisas que não estamos conseguindo resolver cotidianamente. Aí temos um elemento chave. É cruel. Os nossos jogadores têm a idade dos meus filhos, Neymar tem 22. É perverso e covarde jogar a responsabilidade do fracasso nas costas desses meninos, para que eles compensem o que não entendemos na nossa sociedade.

Há um sentimento infantil dessa geração. O discurso de David Luiz, de chorar dizendo que queria dar essa alegria para o Brasil, é muito ruim

P. É muita pressão para tão pouca idade, ainda mais jogando em Copa, ou seja, com a obrigação de ganhar?

R. O Gilberto Maringoni (candidato a governador de São Paulo pelo PSOL) tem uma definição para os black blocs interessante, ao dizer que eles são meninos que tentam ser super heróis com suas máscaras e suas armas de destruição. É um sentimento infantil dessa geração. O discurso de David Luiz, de chorar dizendo que queria dar essa alegria para o Brasil, é quase uma missão nessa linha descrita por Marangoni para os black blocs. Querer salvar o país, armar um time, esse voluntarismo excessivo, quase messiânico, que ele encarnou. É muito ruim. Seja para o futebol, seja para a sociedade. A gente não precisa de Messias, desse voluntarismo desenfreado. Esse é o grande equívoco. Precisamos de atitudes coletivas. Menos covardia e menos hipocrisia. A nossa atitude como cidadãos nos representa.

P. Essa tentativa de encontrar heróis é buscar constantemente reconstruir um mito como Pelé?

R. Veja como como foi construída a história do Pelé e desses meninos. A Copa de 1958. O melhor jogador naquele ano não foi Pelé e nem Garrincha. Mas a história posterior vai construir essa ideia. A imprensa que acompanhou 58 elegeu Didi como o melhor jogador da época. Na maior parte das partidas, ele não é um fenômeno. Ele é um excelente jogador, que tem um excelente desempenho. Quando a Suécia faz o primeiro gol, e o Brasil sai perdendo, o Didi é o cara que vai até o fundo da rede, vem andando calmamente e diz – vamos jogar. Ele é o líder, o que organiza. É o Didi junto com o Gilmar e colocam o Pelé no ombro, depois da partida. O que quero dizer é que o Pelé, sim, foi um dos maiores jogadores de todos os tempos. O Garrincha idem. Mas essas seleções brasileiras sempre tiveram outros atletas extremamente importantes. Nós precisamos de reis, de salvadores da pátria, de fenômenos, de príncipes. O Pelé foi rei do futebol. Rivelino, do parque, da seleção em 75. Ronaldo, o fenômeno. E estamos em vias de construir no Neymar, algo semelhante.

P. Por que esse apoio no futebol como esteio do país?

R. Acredita-se que basta força de vontade no campo de futebol ou no campo da sociedade, de que temos soluções mágicas. Isso é grave, porque a gente tem de aprender com isso. Aprender com o que aconteceu. Não é fazer caça às bruxas. Não é abrir inquisição. Não é procurar exterminar ninguém, como leio nas redes sociais. O ódio e ferocidade, seja em relação à seleção ou a algumas figuras públicas. Esse ódio e crueldade é pernicioso a qualquer reflexão mais sensata. Se há algo a fazer, é não demonizar pessoas ou procurar jogar responsabilidades em um ou outro para aliviar.

P. Em 1950, houve o Maracanazo que condenou o goleiro Barbosa. Mas somos diferentes daquela época, uma vez que existem até profissionais como você para estudar o futebol e a sociedade. O que muda?

Caiu o viaduto da oposição [em Belo Horizonte]. Mas parece que é da conta da Dilma

R. Nós somos diferentes. O Brasil é diferente dos anos 50. Você vai encontrar um monte de gente debatendo sobre isso, e não só especialistas de futebol. Não só estudiosos. No mesmo dia do jogo, já aconteceram brigas e depredações em função do resultado da Copa. É tudo muito complexo. A quantidade de informações de rádio e internet e jornais, isso até gera uma avalanche de informações e precisa circular. Somos também muito diferentes de década de 50, quando o futebol era outra coisa. O que se joga no passado é muito diferente de hoje. O futebol-arte parecia que era um patrimônio exclusivo do Brasil. Mas em 1954, a Hungria tinha um futebol extraordinário. Houve Di Stefano, com a Argentina. Com esse mercado de circulação de atletas, e a possibilidade de assistir a partidas de outros países a uma difusão de saberes de apropriações de manejos táticos do futebol, de modo que ninguém pode se surpreender, pois tudo é muito conhecido. Ontem[terça], quando a Alemanha joga com um futebol bonito, de drible, e nós com chutões de ligação direta de defesa para o ataque. O David Luiz, nosso maior armador? Como assim? Enquanto a Alemanha joga toque de bola, se infiltra e faz muitos gols. Aí a nossa analise é que nós estamos jogando futebol europeu, e eles, o brasileiro. Não, isso não é patrimônio do Brasil.

P. Mas na década de 50 o Brasil era um país que tinha apenas 60 anos de República e de abolição da escravatura, um país muito diferente. Será que não seremos menos cruéis para julgar os atuais “Barbosas”?

R. Essa comparação é muito complicada. São duas sociedades diferentes, a de 50 e a de hoje. A história do Barbosa, aliás, é polêmica entre os estudiosos, pois na época da Copa ele não teria sido crucificado. Construiu-se a perseguição anos depois. Naquele tempo a sociedade cai em cima da organização da Copa, e no trânsito livre dos políticos que ocupam os estádios. Hoje isso não acontece. Em compensação, hoje há uma presença excessiva da mídia, em especial da Rede Globo, e um papel forte dos patrocinadores, a começar com os comerciais do Felipão, para o marketing de produtos. Há uma exposição excessiva dos jogadores, que se tornam heróis num dia, e no dia seguinte se tornam vilões. Difícil essa comparação.

P. O resultado da Copa vai influenciar a eleição?

R. Já interferiu, desde junho de 2013. Já desidratou o apoio à Dilma. Ela perdeu mais de 30% de apoio num ano. Ela veio articulando as demandas sociais. O mais visível não é a Petrobras, por exemplo. O mais visível é a Copa. E é em cima disso que vai ser desferida a campanha. Mas veja, a previsão catastrófica não se realizou. Nenhum estádio desmoronou. Caiu o viaduto da oposição [em Belo Horizonte]. Mas parece que é da conta da Dilma. O prefeito é do PSB e o governo de Minas Gerais é do PSDB. Aqui está o ponto. A percepção que fica para a sociedade brasileira. O mal intencionado vai creditar o viaduto na conta da Dilma.

P. Ela perderá apoio com o 7x1?

Tomar de sete mexe com as entranhas da gente. E o hábito nosso é procurar jogar isso para cima de alguém. A primeira vítima foi o Felipão. E a próxima é a Dilma.

R. Eu sou capaz de apostar que a Dilma cai. Essa depressão precisa ser descarregada, e isso será explorado. Seja direta ou indiretamente. Aí aqueles discursos mais malucos que a Copa já estava comprada. Agora, se o resultado da partida contra a Alemanha fosse digerível, ficaria com a derrota. Mas tomar de sete mexe com as entranhas da gente. E o hábito nosso é procurar jogar isso para cima de alguém. A primeira vítima foi o Felipão. E a próxima é a Dilma.

P. Mesmo com tudo contra, até os mais revoltados com a Copa apoiaram o evento, se fantasiaram. Ninguém resistiu?

R. Quem estava nos estádios desta Copa era uma classe media imbecil, ágrafa, rasteira, reacionária e que não sabia torcer. Tanto que teve que ensaiar musiquinha [para apoiar a seleção]. Essa classe média branca, incomodadíssima em compartilhar espaços em aeroportos, foi claramente contagiada pela festa. Se fantasiou e se deixou levar pela ilusão. Isso não é ruim. Quantas pessoas não aprenderam o que é futebol, a alfabetização sobre o jogo. E gostaria que esse público aprendesse a assumir sua responsabilidade social, para um sociedade sem ódio, sem privilégio. Esse comportamento precisa ser corrigido. E então, agora, começa a eleição. É outra partida. Que não é contra a Alemanha, mas que vamos jogar contra nós mesmo, essa é a partida mais importante.

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