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A Argentina ergue a bandeira branca para os ‘fundos abutres’

Cristina Kirchner viu-se forçada a negociar o pagamento de 1,33 bilhões de dólares (2,97 bilhões de reais) com os credores, apesar de ter prometido que não o faria

Francisco Peregil
A presidenta argentina durante a celebração do Dia da Bandeira em Rosário.
A presidenta argentina durante a celebração do Dia da Bandeira em Rosário.HANDOUT (REUTERS)

Tempos ruins para a epopeia. Na Argentina é difícil agora recordar as palavras pronunciadas por Cristina Kirchner em janeiro do ano passado, quando chegou ao país a fragata Liberdade, navio escola da Marinha argentina, após passar 77 dias retida em Gana por conta de um embargo solicitado pelos fundos Elliot Management e NML Capital. Os investidores pediam o pagamento de 1,33 bilhões de dólares (2,97 bilhões de reais) mais juros. A presidenta resistiu às pressões internas e externas para não pagá-los e conseguiu finalmente que a fragata fosse liberada sem liberar um centavo para os credores.

No seu discurso de boas-vindas aos marinheiros, Fernández atacou os fundos de situações especiais (fundos abutres) mais uma vez e citou o almirante Brown, pai da Armada Nacional: “Quando foi defender o povo uruguaio da agressão lusitano-brasileira em 1826, disse que era preferível que o navio afundasse antes de baixar o pavilhão nacional”. Seguiu citando próceres: “Como também dizia o general San Martín, vamos lutar e quando não tivermos mais nada lutaremos despidos como nossos irmãos índios”. E aproveitou para atacar o diário La Nación: “Durante estes 70 dias algum jornal centenário dizia que era necessário honrar as dívidas e pagar os fundos de situações especiais. Eu digo, por que eles não começam pagando o que devem ao Estado argentino, há dez anos, em impostos?”.

Agora, a situação é bem diferente. Na sexta-feira foi celebrado o dia nacional da bandeira na Argentina. Kirchner poderia ter se envolvido novamente na epopeia dos próceres. Mas, em lugar de fazê-lo, estendeu as mãos para negociar com os fundos e com o juiz de Nova York Thomas Griesa, que havia estipulado o pagamento de 1,33 bilhões de dólares (2,97 bilhões de reais). No seu discurso, não mencionou nem uma vez a palavra “abutre” e usou em 14 ocasiões a palavra “negociar”.

A presidenta decidiu usar os únicos termos que poderiam aplacar os mercados temerosos de que a Argentina recorra a um calote de consequências imprevisíveis. “Dei instruções para nosso ministro da Economia para que nossos advogados solicitem ao juiz que gere as condições para poder chegar a um acordo que seja benéfico e igualitário para 100% dos credores”. Ou seja, para os 92,4% dos credores que aceitaram em 2005 e 2010 a quitação da dívida e para os 7% que não a aceitaram: os fundos abutres.

Os fundos são carniceiros. Mas o juiz nos deu muitas possibilidades de encerrar o tema sem chegar a ter uma sentença desfavorável

Dante Sica (consultor econômico)

Apenas cinco dias antes a linguagem – e talvez as intenções – de Fernández pareciam muito diferentes. A Suprema Corte dos Estados Unidos recusou na segunda a apelação do Governo argentino contra a sentença de Griesa, que obrigava o país a pagar aos fundos Elliot Management e NML Capital 1,33 bilhões de dólares (2,97 bilhões de reais). A presidenta fez um discurso solene em todos os canais de rádio e televisão, no qual advertia que se pagasse esse montante, outros “fundos abutres” estariam em condição de cobrar da Argentina 15 bilhões de dólares (33,46 bilhões de reais), “mais da metade do total das reservas do Banco Central”. Acrescentou que não permitirá ser extorquida. Mencionou quatro vezes a palavra “extorsão”, quatro vezes “abutres” e cinco vezes o nome do juiz Griesa.

No dia seguinte, terça-feira, 17 de junho, o ministro da Economia, Axel Kicillof, utilizou um linguajar semelhante em entrevista coletiva: “Não passarão, não rodearão as restruturações da dívida”. “Os abutres são abutres, porque não negociam”. “Se uma sentença nos diz que devemos nos suicidar, não podemos aceitá-la”. “Não podemos estar de novo em uma situação na qual, por pagar a dívida, a fome reine”.

O consultor econômico Dante Sica acredita que o Governo tem um problema político: “Como mudar do ‘não passarão’ de Kicillof ao ‘deixe-me pagar em parcelas’? ”. “Mas essa é a única solução possível”, acrescenta Sica. “Uma vez que a Argentina litigou, aceitou todas as instâncias, recorreu a Suprema Corte... Agora não pode ignorar a sentença. Se aceitou a regra e o árbitro, agora tem de acatar”.

Acatar essas regras, segundo Cristina Kirchner, implica em que outros fundos abutres cobrem até 15 bilhões de dólares (33,46 bilhões de reais), o triplo do que o Governo argentino pagou para a Rapsol pela expropriação de 51% das ações da YPF. “É certo”, assinala Sica “que outros fundos que não entraram na quitação das dívidas virão dizer que também querem cobrar. E a Argentina terá de sentar com eles. Mas tem de pagar um por um. Não vão entrar pela sua janela a cobrar-lhe 15 bilhões. Agora deveria entrar em uma etapa de negociação que pode levar seis meses a um ano. Mas é a solução mais razoável”.

Dante Sica considera que chegou-se a essa situação por imperícia do Governo. “Os fundos são carniceiros. Mas o juiz nos deu muitas possibilidades para encerrar o tema sem chegar a ter uma sentença desfavorável. Durante sete anos, Griesa pediu ao Governo que preparasse uma proposta de pagamento aos credores. E o Governo sempre disse que não pagaria”, conclui Sica.

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