_
_
_
_
_

Outro país, outro mundo

A Espanha viveu uma mudança radical desde o fim da ditadura Da economia ao modelo familiar, a cultura e a diversão, quase tudo é diferente

A polícia reprime uma manifestação pró anistia em 1976, em Barcelona.
A polícia reprime uma manifestação pró anistia em 1976, em Barcelona.Manuel Armengol Cervera

Quase quatro décadas. Um país diferente. A Espanha em que Juan Carlos I foi proclamado rei, em 22 de novembro de 1975, ainda vivia sob um regime ditatorial e católico. Não conhecia a Internet, nem os telefones celulares. Naquela Espanha, com muitos cidadãos ainda exilados, quase não havia imigrantes, o divórcio não era legal e metade da população, as mulheres, estava absolutamente ausente dos centros de poder. Felipe VI é, a partir de hoje, chefe de Estado de um país diferente. Uma sociedade que deu passos gigantes em muitos aspectos, mas que agora enfrenta uma crise econômica, territorial e de confiança nas instituições de dimensão ainda desconhecida.

EL PAÍS montou um jogo de espelhos entre a Espanha de 1976, a que encarou Juan Carlos I, e a de 2014 na qual reinará Felipe VI. Os dados - a maioria extraídos do Instituto Nacional de Estatística - não podem ser comparados de forma exata porque a metodologia mudou muito. Mas servem de aproximação para acompanhar a mudança de um país entre um século e outro.

Fonte: INE e elaboração própria.
Fonte: INE e elaboração própria.

O mapa político. Em 1975 só havia na Espanha um partido legal, a Falange Española Tradicionalista. E não se realizavam eleições propriamente ditas - democráticas - já havia quatro décadas. Juan Carlos I foi proclamado pelas Cortes franquistas, um pseudo-Parlamento que nem era sede da soberania nem exercia o poder legislativo de forma autônoma. A imensa maioria dos procuradores estavam aí por seus cargos no regime (membros de altos tribunais civis ou militares, prefeitos, reitores, representantes de organizações profissionais) ou tinham sido designados por Franco; só uma pequena parte, os procuradores de família, tinham sido eleitos nos últimos anos da ditadura pelos chefes de família nos municípios.

Não é fácil conhecer a composição exata das Cortes franquistas, porque esta variava muito. A foto pode ser feita, no entanto, tomando como referência a votação da Lei para Reforma Política em novembro de 1976, que significou a sentença de morte do regime: havia naquele momento 531 procuradores; apenas sete eram mulheres: 1%. O perfil político das Cortes franquistas que aplaudiram a proclamação de Dom Juan Carlos era praticamente monocromático.

Felipe VI, ao contrário, será proclamado chefe de Estado em um Parlamento democrático, com a presença de 17 partidos diferentes e quase 40% de mulheres. A Espanha, além do mais, sai de um recente terremoto político: as eleições europeias mostraram um panorama no qual, pela primeira vez na democracia, o bipartidarismo PP-PSOE entra em colapso; e surge com força um partido novo, Podemos, que defende o fim da "casta" política.

Do Movimento à Constituição. Em 1975, Dom Juan Carlos, designado por Franco, jurou respeitar as Leis Fundamentais do Movimento, embora mais tarde iria traí-las; seu filho tampouco foi eleito pelo povo, mas jurará sob uma lei muito diferente, a Constituição, e faz isso na democracia. Mesmo assim, sua proclamação deu lugar a um debate público sobre a forma de Estado - monarquia ou república - impensável há 39 anos.

A incerteza em 1975 era o próprio Dom Juan Carlos: o que faria o Rei depois de assumir o trono, o que aconteceria com o regime. Hoje, a principal frente política - com exceção da crise econômica, que abarca tudo - é a Catalunha: até onde chegará o desafio independentista e como o Estado vai enfrentar.

Pesetas, euros. A ressaca da crise do petróleo que multiplicou por cinco o preço do barril depois de 1973, desatou uma onda inflacionária que terminou nas prateleiras do comércio. Os preços dispararam em quatro décadas ao redor de 1.000%. Só em 1976 houve uma inflação de 17%. As 615.200 pessoas inscritas naqueles primeiros registros de desemprego — ao redor de 2% de desempregados — aumentaram até chegar aos 5.9333.300 de desempregados de 2014, que representam 25,9% da população ativa. O valor do salário mínimo era então de 11.400 pesetas mensais e a nota de maior valor era a verde, de 1.000 pesetas.

Na economia, durante o reinado de dom Juan Carlos tudo mudou: a Espanha trocou as pesetas por euros ao se integrar na Zona do Euro e perdeu a capacidade para fixar as taxas de juros, que hoje são competência do Banco Central Europeu. O salário mais baixo permitido por lei em 2014 por oito horas de trabalho é de 645,30 euros por mês (o equivalente a 107.313 pesetas ou 1.961 reais). Há notas de 500 euros - cujo uso se restringiu para evitar as fraudes - e os pagamentos através de dispositivos eletrônicos se generalizaram. A transformação radical destas décadas transcende a macroeconomia e isso se notou nos bolsos das famílias.

O quilo do pão, elemento imprescindível daquela cesta de compra, custava 45 pesetas. A redução de membros das famílias diminui o nível de consumo. O quilo de pão agora custa 2,10 euros (350 pesetas).

Ir ao cinema custava 55 pesetas. Tubarão, o filme mais visto no primeiro ano de mandato real, arrecadou 272.363.261 de pesetas. Hoje, uma entrada custa 7,29 euros (1.212 pesetas). E nas telas o sucesso é o filme espanhol Ocho apellidos vascos, que arrecadou 53 milhões de euros.

Os primeiros exemplares do EL PAÍS, fundado em maio de 1976, começaram a sair com um preço de 10 pesetas. Nas bancas ele é vendido hoje por 1,30 euros (216 pesetas). O carro mais vendido daquele ano foi o Seat 124. Foram vendidas 43.171 unidades deste modelo que anunciava, na época, “114 cavalos de potência, servofreio a depressão e direção de parafuso rosca sem fim”. Durante aquele ano foram fabricados na Espanha 640.938 modelos das diferentes marcas. Na frente da casa de 1/3 das famílias havia um carro estacionado. Em 2014, outro Seat, o Ibiza, lidera a venda dos utilitários.

Mais aposentados, mais universitários. A lei do divórcio, a incorporação da mulher no mercado de trabalho, a universalização da educação e da saúde públicas, a extensão da educação superior e as profundas mudanças nas relações sociais e no modelo familiar deram lugar a um país novo, com vantagens e problemas diferentes dos que havia em 1975. Em quatro décadas, a Espanha aumentou sua população em 11 milhões de habitantes, até chegar aos 46,7 milhões atuais. E envelheceu: os maiores de 65 anos não chegavam então a 10% e somam hoje 18%: a taxa de natalidade era o dobro da atual. Quando Dom Juan Carlos iniciou seu mandato, a população crescia ao redor de 10 por mil anualmente; agora decresce quase 2 por mil (com dados de 2012).

Havia naquela Espanha ao redor de 9,8% de analfabetos no total da população (12% entre as mulheres). Hoje o percentual daqueles que não sabem ler ou escrever não chega aos 2%, entre os maiores de 16 anos. Um em cada quatro espanhóis nessa faixa de idade possui títulos superiores e milhares de estudantes participam a cada ano em programas como o Erasmus (que diminuiu agora pela crise).

Neste tempo, a Espanha se converteu em um país de imigração... e nos últimos anos também, de novo, de emigração. É muito difícil comparar dados porque em 1975 não existia o censo municipal. As tabelas históricas do INE apenas refletem que em 1976 residiam na Espanha (entende-se que legalmente) 159.924 estrangeiros; 60% deles, europeus. Hoje, na Espanha, há cinco milhões de habitantes de origem estrangeira, 10,7% da população.

A crise econômica deu lugar ao fenômeno inverso: o daqueles que deixam a Espanha para procurar trabalho no exterior. Durante os seis primeiros meses de 2013 saíram 259.227 pessoas, embora a imensa maioria (219.537) eram estrangeiros que, depois de uns anos aqui, decidiram tentar a sorte em outro país com menos desemprego. As tabelas históricas do INE refletem que em 1976 deixaram a Espanha 12.124 cidadãos (além do grosso de 97.279 que viajavam para a França para trabalhar na temporada de colheita no campo).

O Estado laico. O peso da Igreja católica na vida pública era evidente em 1975 - o Rei jurou na Câmara "por Deus e sobre os santos evangelhos". A partir de então, passamos para um Estado laico com plena liberdade religiosa. Em 2009, pela primeira vez, houve mais casamentos no civil (94.993) do que no religioso (80.174). E a isso foi acrescentada, em 2005, uma das leis que mais conflitos gerou entre o Governo, na época do PSOE, e a hierarquia eclesiástica: a lei do casamento homossexual. Em nove anos foram celebrados cerca de 25.000 casamentos gays. A laicidade do Estado, no entanto, continua sendo incompleta na prática: os funerais de Estado são celebrados em catedrais e com missa, em muitos colégios continuam existindo crucifixos sobre o quadro-negro, a matéria religião conta para a obtenção de bolsas de estudo, e a Igreja católica tem um financiamento específico através do imposto de renda.

Em 1976, a população penitenciária era de 9.937 pessoas e o delito mais comum era o roubo de bolsas com o método do puxão. Em 2013, havia 67.404 reclusos. A Espanha é, junto com o Reino Unido, o país da UE com maior taxa de população presa, apesar de possuir baixa criminalidade, segundo a Eurostat.

Diversão de ontem e hoje. Nas rádios, o sucesso há quatro décadas era a música Ramito de Violetas da cantora espanhola Cecilia, e Bruce Springsteen inaugurava uma página na história do rock com seu disco Born to run. A televisão - só dois canais, públicos, ao contrário das dezenas de canais privados que existem hoje - contribuía para fabricar mitos pátrios. Félix Rodríguez de la Fuente fazia metade do país se sentar na frente da telinha quando começava a transmissão de El hombre y la tierra. O motociclista Ángel Nieto tinha ganhado meia dezena de campeonatos mundiais. E as estrelas do Real Madrid, campeão da Liga em 1976, recebiam salários anuais de 20 milhões de pesetas. A anos-luz dos 15 milhões de euros (2, 5 bilhões de pesetas) que recebem hoje os ídolos do campeonato. A seleção espanhola de futebol tocou a glória com um campeonato mundial e duas Eurocopas.

Os meninos de ontem se divertiam com cliques do Famobil, o brinquedo preferido da época. Hoje, os consoles tomaram os quartos da classe média.

O contexto internacional. A Espanha logo pediu sua adesão à Comunidade Econômica Europeia, em 1977, mas teve que esperar nove anos. Ninguém nem imaginava ainda a queda do Muro de Berlim. Os jornais tratavam de uma incipiente guerra no Camboja que desembocaria no genocídio dos Khmers vermelhos. E da explosão de um novo conflito sangrento entre Etiópia e Somália.

Felipe VI se encontra com um mundo com uma única potência dominante, os EUA, que começa a ser questionada por um punhado de potências emergentes encabeçadas pela China, enquanto a Rússia tenta recuperar sua influência. Os grupos jihadistas se converteram em uma ameaça à estabilidade mundial. A América Latina avançou para a democracia. O conflito árabe-israelense continua aceso.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_