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Coluna
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Os linchadores de luva branca

Não se trata mais de um punhado de pessoas na rua, mas de um exército deles, escondidos detrás das cortinas imaculadas de seus gabinetes

Juan Arias

Existem os linchamentos filhos da barbárie popular, perpetrados por pessoas anônimas com as quais cruzamos na rua e até trocamos um “Deus o abençoe”, e existem os linchamentos de luva branca, cometidos por pessoas importantes, que se escondem sob as máscaras do poder, que destroem não uma pessoa, e sim milhões de famílias torturadas durante uma vida inteira ao serem condenadas à pobreza, ao abandono e a desigualdades injustas.

Os linchamentos que ultimamente nos escandalizam e nos gelam a alma são perpetrados por pessoas comuns quando o demônio da violência, que se aninha em cada um de nós, se desata de repente com laivos de psicopatia.

Com um texto magistral, neste jornal, a escritora Eliane Brum denunciou com paixão civilizadora essa dupla barbárie cometida quando nos arrependemos depois de nos enfurecermos com uma vítima que afinal era inocente, como se tivéssemos carta branca para linchá-la se fosse culpada.

Existem os linchamentos realizados, às vezes com uma sanha que faria inveja aos torturadores de ofício, por pessoas que nos surpreendem porque, até minutos antes, eram pacíficas, às vezes mães de família, ou jovens felizes com suas namoradas.

Como é possível que tenham feito isso?, nos perguntamos. Os sociólogos e psicólogos explicam o fato com uma metáfora sobre a água que passa muito tempo estancada. À primeira vista é mansa e, de repente, transborda em uma avalanche de violência destrutiva.

Trata-se, dizem, da raiva contida dos cidadãos comuns. Uma raiva às vezes contra os governantes que nos deixam abandonados à nossa sorte, indefesos; outras, por substituição, contra o chefe déspota, a quem não se pode pisotear, ou como resposta a uma violência acumulada durante anos por humilhações sofridas em silêncio.

Não gostaria de aparecer como advogado defensor dos linchadores comuns, nem analista dos motivos que podem levar um cidadão, considerado horas antes como decente e bom cidadão, a se somar à lapidação de algum ente próximo, por mais bandido que seja. Nada, absolutamente nada, justifica tomar a justiça com as próprias mãos, porque ela nos arrasta para o poço negro da pior das barbáries, sala de espera de novos holocaustos, como lucidamente apontou Eliane.

Gostaria, sim, de ressaltar que também existem hoje, aqui e no mundo inteiro, os linchadores de luva branca, os que não precisam sujar as mãos de sangue nem se desopilar passando com uma bicicleta por cima do pescoço de uma mulher linchada.

Fazem-no com maior elegância, delegando. Não precisam escandalizar com a brutalidade do sangue derramado e da carne torturada das vítimas. E multiplicam por milhares, às vezes por milhões, o número de vítimas escolhidas, das quais nunca verão o rosto, como os nazistas que assinavam as sentenças no Holocausto judaico ou como tantos outros holocaustos perpetrados pelas ideologias de direita e de esquerda em nossa História atormentada e cruel.

São os linchadores que atuam entrincheirados nos palácios do poder político, econômico e judicial. E nem sequer me refiro aos corruptos que se apropriam, às vezes, do dinheiro público roubado dos contribuintes.

Eu me refiro aos que tornam possível que uma pessoa se suicide por ter sido despejada da sua casa após não conseguir pagar sua hipoteca ou o aluguel; aos culpados de que haja gente se vendo novamente em seu inferno de pobreza, quando já estava saboreando o sonho de ter saído do túnel escuro da miséria, antes de ser golpeada por uma inflação provocada às vezes por bastardos interesses políticos; aos que detêm um poder capaz de mover as alavancas da especulação financeira e da especulação imobiliária, ou que permitem que bancos e Bolsas engordem à custa de criar pobreza; aos partidos que deveriam representar os interesses dos cidadãos, mas que acabam se apoderando do Palácio de Inverno do Estado para usá-lo a seu favor e contra seus representados.

Não se trata mais de um punhado de linchadores na rua, e sim de um exército deles, escondidos detrás das cortinas imaculadas de seus gabinetes, de onde são incapazes de ouvir os gritos de dor de todos os martirizados, condenados à infelicidade.

A barbárie não admite adjetivos. É sempre fruto do nosso lado negro, dos nossos instintos ancestrais ainda não mediados pela cultura. Não existem barbáries maiores ou menores. Todas são desprezíveis porque toda pessoa, a mais humilde, a mais banal e até a mais malvada, tem direito de ser respeitada, e só a Justiça democrática pode julgá-la e condená-la.

Mas, se não existem barbáries melhores ou piores, existem, entretanto, responsabilidades diferenciadas. A responsabilidade, por exemplo, dos que têm em suas mãos as engrenagens e os destinos das sociedades, às quais podem conduzir à felicidade ou arrastar para a barbárie, é, sem lugar a dúvidas, mais grave, mais cruel que a do simples cidadão que, às vezes, desesperado perante a ausência dos responsáveis, se transforma em culpado verdugo improvisado.

A pergunta que fica, portanto, é: seria um erro afirmar que os responsáveis máximos, os linchadores oficiais que se escondem atrás de cada violência anônima, são os que desfrutam e abusam do poder que nós lhes demos e que tantas vezes dão as costas a esse sangue da barbárie comum que mancha a rua, porque estão ocupados em outras coisas que lhes parecem mais prementes do que os gemidos das vítimas da violência institucional?

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