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Coluna
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A Congregação do Mal

Yusuf e seus seguidores se tornaram terroristas contra qualquer forma daquilo que chamam de educação e cultura ocidentais

Ao que parece, nem os próprios membros da organização terrorista conhecida como Boko Haram, da Nigéria, sabem qual é o verdadeiro significado do seu nome. Fundado na localidade de Maiduguri como Congregação do Povo pela Tradição do Proselitismo e a Jihad, ficou conhecido como Boko Haram (que poderia ser traduzido como “pecado proibido”), um apelido coloquial entre pessoas que desde 2009 o identificam como extremistas islâmicos não só de etimologia indefinida como também sem limites em seu credo arrevesado: a conversão forçosa de qualquer incauto à sua interpretação particular do Islã, ao mesmo tempo em que não convivem com a população muçulmana, e, com a profissão de unir todo militante sob seu conceito de religião, incluem agora criminosos incrédulos, mercenários sanguinários e radicais irracionais. Mohammed Yusuf, fundador dessa Congregação do Mal, chegou a afirmar em uma entrevista à BBC de Londres que sua confraria lutava por abater não só a teoria da evolução de Darwin e as oportunidades de educação entre as mulheres, como também rechaçar abertamente a redondez da Terra. Para ele e seus fanáticos ignorantes, a noção de que vivemos em um planeta esférico contradiz os ensinamentos do que eles entendem por Islã, tanto como se negam a acreditar que a chuva é na verdade água evaporada pelo sol.

A animalidade da ignorância se torna violenta não só porque sua condição essencial contenha a palavra ‘mal’, mas porque se tentou combatê-la não com a razão. Yusuf e seus seguidores se tornaram terroristas contra qualquer forma daquilo que chamam de educação e cultura ocidentais: a violência ante qualquer insinuação de democracia, e nem se imagina o asco que lhes causa escutar que alguém fale de fotossíntese. Entretanto, antes que seu líder Mohammed Yusuf morresse, se soube que levava uma vida luxuosa, que falava inglês perfeito e que tinha um Mercedes Benz com chofer a seu dispor.

Entra em cena Abubakar Shekau, que é agora responsável pelo sequestro de mais de 200 meninas nigerianas, e a quem podemos ver em um terrível vídeo onde fala com a cabeça inclinada como pantera, usando a metralhadora como cajado, o olhar de ódio puro e a mão que se estende para a câmera qual a língua de uma víbora. Conforme informa José Naranjo nas páginas deste jornal, Shekau é um veneno escorregadio e sanguinário, várias vezes dado como morto, e ninguém sabe com precisão se realmente nasceu no norte da Nigéria ou no vizinho Níger. Não se sabem as datas da sua idade, mas sim a trajetória que o levou a herdar o comando da Congregação do Mal fundada pelo irracional Yusuf. A frase que explica seu currículo ficou registrada em outro vídeo, no qual afirma: “Eu me divirto matando todo aquele que Deus me manda matar, assim como me divirto matando frangos e carneiros”.

Gilbert Keith Chesterton publicou em 1907 O Homem Que Foi Quinta-Feira, com o subtítulo Um Pesadelo. Trata-se de uma obra-prima do indispensável autor inglês, que tece em seus parágrafos – tal como fez em ensaios, artigos e conversas à mesa – profundos mistérios teologais com tramas saborosas, diálogos perfeitos, passeios em prosa e personagens inesquecíveis. Situada em uma Londres de neblina e gabardinas, O Homem Que Foi Quinta-Feira é o pesadelo vivido por um detetive da Scotland Yard chamado Gabriel Syme, que sente uma náusea como de insônia ou de borbulhas de champanhe desde as primeiras páginas desta história, na qual sua missão é espionar uma secreta organização anarquista cujos sete membros usam como codinome os dias da semana. Em uma reunião ocasional, Syme discute sobre poesia com um tal Lucian Gregory, anarquista declarado, que não só crê como também luta por convencer a todos que a essência da poesia se encontra na revolta, na rebelião e na revolução contra toda forma de lei. O disfarçado detetive defende a postura contrária e tenta convencer o ruivo poeta anarquista que não há nada mais poético que os horários pontuais dos trens, a quadrícula da lei acima de toda forma de anarquia, e que nada deve ficar ao acaso nos destinos de todas as vontades humanas. Sua discussão, como a de todo o romance, se debate entre a aberta existência do livre-arbítrio e a às vezes inexplicável recorrência do mal irracional e coletivo.

Curiosamente, as épocas em que os anarquistas ingleses atiravam bombas redondas e pretas com mechas faiscantes, como as de caricaturas, se assemelham muito aos enlouquecidos lances dos que enviam vírus por correspondência, bombas em caminhonetes e agora o sequestro de mais de 200 mulheres inocentes, sem que possam ser localizadas por nenhum satélite. Aqui onde se esfumam aviões em um vazio que escapa aos modernos localizadores cibernéticos contidos nos telefones modernos, lá onde as vemos rezando passagens do Corão em um coro aterrorizado que acompanha os ditados do enlouquecido Abubakar Shekau, que afirma não entender por que os pais querem a salvação ou resgate dessas meninas, se ele mesmo afirma já terem sido elas resgatadas ao serem convertidas àquilo que ele acredita ser o Islã. Entretanto, numa contradição semelhante às que vivia o fundador da sua Congregação do Mal, Shekau diz estar disposto a intercambiar seus reféns pela libertação do mesmo número de detentos da sua organização terrorista, e enquanto isso se mantém em suspenso a tensão já generalizada diante da infâmia e do horror.

Quarta-Feira diz a Segunda-Feira que considere o que foi dito por um Sexta-Feira. Terça-Feira fica ponderando a candidatura de um poeta ruivo como possível Quinta-Feira, ao passo que Sábado se nega a contradizer qualquer coisa que Domingo disser… A reunião dos dias no romance de Chesterton se transforma no camarote dos irmãos Marx, onde afinal escolhem como Quinta-Feira não o poeta anarquista, e sim o agente infiltrado Gabriel Syme, que, para surpresa sua e dos leitores, descobre parágrafo a parágrafo que os outros homens que são dias são também agentes infiltrados, todos eles policiais disfarçados de anarquistas, menos Domingo, que aparentemente é a própria natureza de um todo onde se conjugam o Bem e o Mal, com maiúsculas.

As manchetes da terça-feira ofuscam a notícia espetacular do sábado, e uma sexta-feira qualquer se torna fofoca por falta de interesse nos suplementos do sábado… A segunda-feira tenta despertar da letargia que os leitores arrastam já desde quarta-feira passada, e ninguém sabe mais ao certo quem é ou que conta Quinta-Feira. Enquanto isso, tremem à beira do abismo as vidas de mais de 200 meninas cujo único delito, segundo seus captores, era serem internas em uma escola onde se preparavam para serem médicas, advogadas, engenheiras, professoras, arquitetas de um melhor futuro para suas famílias, para suas comunidades, para outros meninos e meninas além das masmorras da ignorância. À beira da morte, há hoje mais de 200 meninas e jovens (ao redor de 50 delas conseguiram escapar no momento do seu sequestro coletivo), a maioria delas cristãs, embora na absurda veemência de seus captores alunas muçulmanas também tenham sido levadas. Mais de 200 meninas, hoje à beira da morte, que foram arrancadas dos seus lares e do transcurso de seus dias pela absurda veemência de quem nega as razões da chuva, a redondez da Terra e a origem das espécies. Hoje, à beira da morte, mais de 200 meninas… ou melhor, uma só jovem mulher que tenta exercer seu direito ao saber e a sonhar um futuro melhor para todos os dias.

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