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O boleiro emocional

É impossível explicar Simeone sem a bola, porque a partir de sua relação com o esporte ele construiu sua personalidade

Ladislao J. Moñino
Simeone pede o apoio da torcida no Vicente Calderón.
Simeone pede o apoio da torcida no Vicente Calderón.Denis Doyle (Getty)

Sensível, áspero, terno, portenho afiado, piadista irônico, desafiador, autoritário e intimidador com físico esculpido na academia. Duro e brando, foi marcado pela imagens da épica superação dos treinamentos de Rocky, assim como o enganou Whitney Houston. Transparente até clarear seu lado mais retorcido, como todo indivíduo que se alimenta das emoções, Diego Pablo Simeone (42 anos, Buenos Aires) se vê vindo de longe em todos os planos sobre os quais se projeta. É um desses ganhadores empedernidos instalado nesta dimensão em que a derrota permanece latente em seu interior até a vitória. É impossível explicá-lo sem o futebol porque a partir de sua relação com a bola se pode elaborar um tratado antropológico: sentido de clã e de pertencimento para governar o vestiário, realização individual e coletiva através do grupo e códigos internos e externos para movimentar-se e mudar de pele de acordo com o contexto.

Se vai a Milão, fala italiano na entrevista coletiva, corta as pontas abertas na nuca que o deixavam com um ar macarrônico e usa marcas famosas. Em campo, por superstição, se reveste de um preto solene que o deixa com ar de capo da máfia. Seu último corte de cabelo foi copiado do belga Toby Alderweireld.

Vive e revive as partidas mentalmente antes de disputá-las, aparecem jogadas e jogadores para ele quando o ócio não é o bastante”, dizem em seu entorno

Se está treinando, caminha em silêncio pelo gramado com o ar de cacique que Passarella gravou em sua infância, anima as ações ou se apoia contemplativo em uma das traves para fiscalizar com olhar analítico e, às vezes, de quartel. Também concede espaços para baixar a pressão, como quando neste ano, antes de um clássico, espetou Mono Burgos: “sempre foi branco”, por marcar uma falta a favor da equipe que treinava com colete nesta cor.

A emoção embarga e enche de lágrimas seus olhos quando fala com seus filhos pelo telefone antes e depois das partidas, como fez no domingo, A seu pai, com tanto respeito como proximidade, se dirige como Simeone e pode dar o abraço de urso como fez no Camp Nou.

Se pode dizer que, a partir do futebol, El Cholo, apelido com que foi batizado por um treinador das divisões de base do Vélez, construiu um caráter que desembocou em um boleiro emocional com doses passionais extras. “Quando zappea e a tela fica verde, não muda mais”, brincam os que convivem com ele. Vive e revive as partidas mentalmente antes de disputá-las e aparecem jogadas e jogadores quando o ócio não é o bastante. A palavra boleiro dá vida a Simeone em toda a sua extensão, seja interpretando as bolas na trave com mensagens engenhosas –“se não existissem as traves não se teria onde pendurar as redes”– ou brigando para que os boleiros da final da Copa vencida contra o Real Madrid no Santiago Bernabéu fossem das duas equipes na mesma quantidade.

Villa e Simeone, durante um treino.
Villa e Simeone, durante um treino.efe

Como foi criado ao redor de “bola, bola e bola”, conhece a rua para interpretá-la desde seu lado mais vivo. E como também cresceu e amadureceu em torno do esporte, não separa o futebol de sua vida, mesmo porque o esporte o ensinou valores inegociáveis que aplica igualmente fora de campo: esforço, solidariedade e valorização da equipe como grupo criado com um único fim, ganhar. Simeone jogou, e agora dirige, com o hedonismo de fundo que proporciona se impor em uma partida de futebol ou conquistar uma Liga.

Não começou a cogitar a possibilidade de ganhar a Liga até passada a metade do campeonato

Em seu decorrer até alcançar o título espanhol, já intuía em julho que o estilo de jogo e a equipe construída poderiam acabar com o duopólio Madrid-Barcelona que durava uma década. Para fora, Simeone não começou a cogitar a possibilidade de ganhar a Liga até passada a metade do campeonato, ainda que antes já jogasse de forma que “não é o mesmo ser segundo a oito pontos do líder que a dois”, como conta seu preparador físico Óscar Ortega. Para dentro, desde os primeiros dias do verão boreal em San Rafael sempre teve o palpite de que o impossível poderia ser possível e assim se comunicou com os jogadores com essa eterna advertência tão sua: “Enquanto não sairmos do que sabemos fazer”.

Diante da pergunta madrugadora de se a equipe era aspirante ao título, redobrou sua mensagem de “partida a partida”. Para então já havia eleito Diego Costa como cobrador de pênaltis à frente de Villa. Esta foi a decisão que terminava de reforçar a ideia de que a equipe começava por Courtouis e acabava no artilheiro, e que entre eles tudo era feito para que um sofresse poucos gols e o outro fizesse todos os que pudesse.

Se na vitória é prudente, como jogador aprendeu que no futebol quando se enche o peito não se é furado, a menos que te explodam, na derrota apareceu esse Simeone um ponto revanchista com a imprensa, ainda que também tenha sido humilde para reconhecer erros. Teve uma má resposta com um jornalista após uma derrota em Pamplona (3 x 0), a pior partida da temporada, ainda que na semana seguinte tenha se retificado. Simeone tem dificuldade para aceitar a crônica jornalística porque diz que “é a posteriori”, sem parar para pensar que como no teatro ou no cinema, o cronista antes de escrever tem que ver. Também não gosta das caras fechadas no vestiário diante de suas decisões e castigou mais de um jogador, estrela, titular ou suplente, com o banco quando torceu o nariz em excesso.

Aquele tropeço de Pamplona foi o segundo consecutivo fora de casa (2 x 0 ante o Almería), mas, sobretudo, aconteceu com Diego Ribas em campo, que contabilizava derrotas em suas quatro primeiras aparições entre os titulares, essas duas da Liga e as duas nas semifinais da Copa contra o Real Madrid. Isso o colocou na linha de fogo do que mais tira o seu sono como treinador. “Se preocupa muito que os jogadores achem que não é justo”, disse Ortega. Havia pressionado bastante os dirigentes para que contratassem Diego e também havia conseguido a chegada de Sosa, outro pedido dele. Os dois tiveram oportunidades logo na chegada, com poucos treinamentos, e essas derrotas contribuíram para que alguns jogadores começassem a perceber uma injustiça que ele tanto se preocupava em evitar. Retificou, rebaixou quem o decepcionou, deu a titularidade a Raúl García à frente de Villa, e proclamou: “Não tenho compromisso com ninguém”. Dessa forma o Atlético se impôs nesta reta final da Liga com a justiça do rendimento como base. Depois de 18 anos fez campeão o clube que o chamou até os ossos de forma que, quando ainda era jogador, sabia que recorreria a ele quando estivesse em apuros. Por isso, a torcida o reconhece como um dos seus e o reverencia a cada partida com esse “"Ole, Ole, Ole, Cholo Simeone", que é uma maneira de dizer Atlético para sempre e eleger uma maneira de viver o jogo.

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