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Canadá desbanca EUA como o país com a classe média mais rica do mundo

A crescente desigualdade de renda e os escassos investimentos públicos nos Estados Unidos o levam a cair de posição

Uma mulher compra no mercado Jean-Talon, em Montreal
Uma mulher compra no mercado Jean-Talon, em MontrealMichael Defreitas

O crescimento feroz da desigualdade de renda e o estancamento da ascensão social nos Estados Unidos debilitaram a american middle class. Um conceito algumas vezes difuso, mas que se casa à perfeição com o ideal do sonho americano, esse em que qualquer pessoa que trabalhe duro tem uma oportunidade de prosperar nesse país. A mitificada classe média cambaleia. A essência da identidade estadunidense como terra das oportunidades se desvanece. E quem protagoniza essa mudança – o tempo dirá se pontual ou permanentemente – quem assesta o golpe no orgulho é o vizinho do norte, ao qual os estadunidenses valorizam muito positivamente, mas que tendem a ignorar e desconhecer.

O Canadá desbancou os EUA como o país com a classe média mais rica do mundo. É o que revela um estudo do LIS, um instituto de Luxemburgo que anualizou a evolução das rendas, após pagamento de impostos, de vários países avançados nos últimos 35 anos, com a novidade que os segmenta em camadas de riqueza da população. Isso permite extrair uma mediana – correspondente à camada da metade – em vez de uma média. Enquanto em PIB per capita o domínio dos EUA é avassalador – 15% superior ao do Canadá nos últimos 25 anos –, porque a hiperconcentração de ricos infla a média, na mediana a renda nos EUA é suplantada pela do Canadá.

Em 2010, último ano com dados, ambos os países empataram em 18.700 dólares (41.551 reais) por pessoa – 75.000 dólares (166.700 reais) em uma família de quatro – e a partir daí a mediana da renda canadense vem superando a dos estadunidenses, segundo projetam o instituto e outras análises governamentais. O motivo é que nos últimos três anos os salários no vizinho do norte cresceram mais do que nos do sul. “Os EUA não estão perdendo terreno, mas simplesmente estão sendo alcançados”, explica por telefone Diane Francis, professora na escola de ‘management’ da Universidade de Ryerson, em Toronto, e que tem nacionalidade de ambos os países.

A “ultrapassagem” se deu na última década. Os 18.700 dólares de renda nos EUA em 2010 significam que houve um incremento de 20% em relação a 1980, mas apenas uma variação desde 2000. Em troca, entre 2000 e 2010 a renda média dos canadenses aumentou 20%, o mesmo que no Reino Unido e um pouco mais do que na Holanda (14%) nesse intervalo. A chave do declínio estadunidense não recai nas rendas médio-alta e altas, pois os endinheirados – desde o 60% mais rico até o 95% – em 2010 o eram muito mais que seus equivalentes canadenses, segundo dados do LIZ recompilados pelo ‘New York Times’.

No entanto, nos segmentos médio-baixo a renda é maior entre os canadenses. E quando se vai ainda mais para baixo na escala da renda, os estadunidenses mais pobres são amplamente superados não só pelos canadenses, mas também pelos suecos, noruegueses, finlandeses e holandeses. “A classe média é provavelmente a mesma nos dois países, mas a baixa vive ligeiramente melhor no Canadá”, observa Francis, que vive entre Toronto e Nova York.

Nem sempre foi assim. Em 1980 os estadunidenses eram os mais ricos do mundo em todas as camadas de renda, exceto na mais baixa, a dos 5% mais pobres, dominada pelos noruegueses. Depois disso, porém, a hegemonia dos EUA foi sendo reduzida gradualmente e somente se manteve entre as camadas altas. “É o resultado de salários que não aumentaram ou caíram em termos reais”, sentencia Jacob Kirkegaard, pesquisador do instituto econômico Peterson em Washington. Ao mesmo tempo, os ricos ficaram mais ricos com os suculentos lucros na bolsa de valores.

Os especialistas atribuem o empobrecimento da classe média principalmente a dois fatores. Por um lado, a deterioração acadêmica fruto das diferenças de investimento público entre países. Segundo a OCDE, enquanto os estadunidenses de 55 a 65 ano têm capacitação acima da média de seus pares em países avançados, os de 16 a 24 anos se situam abaixo de seus equivalentes no Canadá, Austrália, países escandinavos e Espanha.

E por outro lado, tanto o Estado como as empresas fazem muito pouco para redistribuir a renda. Bem ao contrário do Canadá e de muitos países europeus onde as pessoas pagam mais impostos, mas em troca de mais serviços, como saúde e educação pública de qualidade. No Canadá tem sido o Estado o promotor do desenvolvimento do país, enquanto nos EUA é o dinamismo privado auxiliado pelo Governo, o que impulsionou a camada de cima, com a contrapartida de deixar mais de lado a harmonia da renda entre a população.

Nos EUA os altos dirigentes ganham muito mais, o salário mínimo é mais baixo e os sindicatos se enfraqueceram enormemente. Tudo isso conflui para um coquetel devastador: em 1983 a diferença entre o salário médio de um executivo-chefe de empresa e o de um trabalhador era de 46 para 1, em 2013 foi de 331 a 1. Não surpreende, portanto, que a desigualdade de renda esteja no nível mais alto desde 1928.

Para combatê-la, o presidente dos EUA, Barack Obama, propôs aumentar o salário mínimo federal dos atuais 7,25 dólares por hora (16,10 reais) para 10,10 (22,44 reais); mas por ora vem se deparando com a oposição republicana no Capitólio, que argumenta que isso poderia provocar um rastro de demissões. No Canadá, o salário mínimo equivale a 9,30 dólares (20,66 reais) e em junho subirá até 10 dólares (22,22 reais). Mas esse não é o único motivo para que sua classe média seja agora a mais rica do mundo.

Coincidindo com o descenso da primeira economia mundial, a 11ª experimentou avanços. “O Canadá foi inteligente ao evitar que seu sistema financeiro entrasse em colapso, mas teve sorte com a revalorização de suas matérias-primas”, observa Francis. Desde 2003 o país vive um boom petrolífero que lhe permitiu duplicar sua produção e criar empregos.

Mas nem tudo está tão idílico ao norte do paralelo 49. “A classe média e a baixa têm de pagar 50% a mais do que nos EUA para comprar uma casa”, ressalta. Algo em que coincide com Kirkegaard, que vaticina uma bolha imobiliária e uma queda de preços em um ou dois anos. Isso, prevê, afetaria a classe média e faria com que os EUA recuperassem o trono, mas “sem a grande vantagem” de antes.

De fato, no livro 'Merger of a Century', Francis sustenta que os dois países têm muito mais em comum do que parece, até o ponto em que propõe que se unam. Sua tese é que, se for excluída a província de Quebec, no leste do Canadá, e os Estados do Sul dos EUA que lutaram na Guerra Civil, os demais habitantes de ambos os países têm “valores muito semelhantes” e compartilham uma ideologia política centrista.

A professora argumenta que Quebec e o Sul dos EUA se caracterizam por ter valores tão profundamente homogêneos entre suas populações que conseguem inclinar as respectivas políticas nacionais em direção a seus postulados: Quebec para a esquerda e o Sul para a direita. Há até mesmo quem veja o primeiro-ministro canadense, o conservador Stephen Harper, mais como um republicano moderado dos EUA e Obama mais como um progressista canadense. O que de fato é certo, por ora, é que o vizinho do norte mudou o significado do conceito de ‘american middle class’.

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