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O Brasil debate a revisão da lei da Anistia para os crimes da ditadura

O país vive um clima propício para rever a legislação que impede que os torturadores do Governo militar sejam processados A medida também alcança os militantes de esquerda que mataram nessa época

Manifestantes a favor e contra a ditadura durante evento na Câmara.
Manifestantes a favor e contra a ditadura durante evento na Câmara.Antonio Augusto (Câmara dos Deputados)

Os familiares e vítimas de crimes da ditadura tiveram um alento nas últimas semanas. A revisão da lei de Anistia, de 1979, foi aprovada pela Comissão de Direitos Humanos do Senado. O projeto de lei proposto pelo senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), ainda deve passar por mais duas comissões (de Relações Exteriores e de Constituição e Justiça do Senado) e pelo plenário da Câmara dos Deputados. Mas o clima parece favorável para que seja finalmente aprovada, segundo os mais otimistas. A entrada em vigor do projeto de lei implicaria na judicialização dos militares envolvidos em crimes políticos, torturas e violência durante a ditadura, bem como a punição de civis que participaram como membros da luta armada e que promoveram ações violentas contra o regime, entendidas todas como graves violações dos direitos humanos.

Outras propostas similares já haviam sido apresentadas. Em 2010, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) se manifestou ao Supremo Tribunal Federal e não conseguiu uma interpretação favorável. A deputada Luiza Erundina (PSB-SP), em 2011, também apresentou um projeto para alterar a lei da Anistia, que ainda não foi aprovado. As razões para que essa lei seja alterada agora é conjuntural. Segundo a advogada Rosa Cardoso, que já foi presidente da Comissão Nacional da Verdade, existem dois fatores que influenciaram positivamente para que o perdão dos crimes da ditadura fosse revogado. “O primeiro é o movimento das comissões da verdade, que está capilarizado na criação de mais de 150 órgãos e comitês pelo país, lutando pela justiça”, explica, enfatizando que a instalação da comissão se baseou em uma sentença da Organização dos Estados Americanos. “O segundo é a sensibilização da sociedade. As manifestações (de junho do ano passado e as mais recentes, contra a Copa) remeteram a um tratamento militar (por parte da polícia), de agressão física e tortura, que faz com que as pessoas entendam a impunidade como algo que tem a ver com elas, com a vida delas”, conclui. O deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ) publicou uma mensagem de apoio à revisão em seu Facebook, e até mesmo uma petição foi criada no site da Anistia Internacional para recolher assinaturas em apoio à reforma da lei.

Entre os militantes de esquerda, alguns com participação na luta armada, o assunto ainda é controverso. Entre os que se declararam contrários à revisão, está a própria presidenta Dilma Rousseff, “que fala na posição de chefe de Estado”, acredita o professor de ciências políticas Antônio Roberto Espinosa, que lutou ao lado da ex-militante, usuária de vários codinomes - como Vanda e Luíza - durante o período militar. Dilma entrou com 22 anos para o grupo estudantil do Comando de Libertação Nacional, que se fundiu posteriormente com o VAR-Palmares de Espinosa. Em uma das poucas entrevistas na qual falou sobre o período, publicada pela Folha de S. Paulo em 21 de junho de 2005, que havia sido concedida ao jornalista Luiz Maklouf Carvalho em 2003, ela disse que levou "muita palmatória", choques, socos e passou por interrogatórios de longa duração em porões no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.

O hoje deputado federal Alfredo Sirkis (PSB-RJ) já anunciou publicamente que, para ele, retomar esse episódio seria uma medida inócua. Entre os que se colocam a favor, a opinião é que uma possível revisão é uma aposta pela transparência. Espinosa, ex-comandante da Vanguarda Popular Revolucionária Palmares, defende que “se o preço para investigar o que os militares fizeram é um reexame do que nós fizemos, tudo bem. Nós já fomos julgados”, alega o ex-militante, que foi torturado e permaneceu preso entre 1969 e 1973.

O relator da proposta, o senador João Capiberibe (PSB-AP), acredita que os crimes que continuam sendo perpetrados por policiais militares é fruto dessa impunidade histórica, que “fez com que a postura torturadora atravessasse no tempo”. Cita o exemplo do desaparecimento do corpo do ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza “pelas mãos do aparelho de segurança do estado”, um exemplo usado também por Marcelo Rubens Paiva em entrevista a este jornal, mas é positivo quanto ao esclarecimento de casos similares que ocorreram durante a ditadura. Para ele, o entendimento da sociedade em relação ao caráter violento e truculento daquele período já é hoje mais profundo, mas que o debate ainda nem começou. “Vemos que a sociedade está preocupada com o processo democrático, que fez bem ao país. Os que são contra são movimentos residuais, não há uma aceitação desses saudosistas”, opina. A visão de Capiberibe é partilhada por Espinosa, que entende que “nossa democracia jamais será sustentável enquanto se construa sobre cadáveres insepultos, resistentes desaparecidos de 45 anos atrás e arquivos públicos ocultados do público”.

As atividades realizadas pelas comissões da verdade e familiares foram e são fundamentais para que o processo avance, coincidem os analistas. Os depoimentos recolhidos pela comissão, como o do coronel reformado do Exército, Paulo Malhães, e o do general José Antônio Nogueira Belham, que atuaram ativamente durante o regime militar contra os considerados opositores na época, agregam novas informações que poderiam ser usadas para abrir processos criminais, que talvez terminem em indultos, dada a idade dos envolvidos, mas que são necessários para esclarecer e acertar as contas com o passado. “O repúdio crescente às casas da morte, aos centros de tortura e ao golpismo, em grande parte, deve-se às descobertas da Comissão Nacional da Verdade”, defende Espinosa.

Para a presidenta da Comissão de Direitos Humanos do Senado, a senadora Ana Rita (PT-ES), este é o momento certo de abordar o assunto, tanto com a sociedade quanto com os políticos. “Existe um clima muito propício, o que não significa que será fácil, já que nem todos os parlamentares entendem que uma revisão da anistia seja necessária”, alega, alertando sobre as travas que a revisão pode encontrar pelo caminho até sua definitiva aprovação. “Não tem nenhuma bancada que seja contra, mas não podemos ignorar que um ou outro tenha sua posição”, explica.

Ainda que seja uma medida positiva e demandada por vários setores e afetados, é vista com desconfiança por aqueles que estão na luta há anos, como é o caso da Ângela Mendes de Almeida, viúva do jornalista Luiz Eduardo Merlino, torturado e assassinado durante a ditadura. “Ainda passa pelas duas comissões e com certeza terá muita resistência”, acredita. Através de um processo cível, Almeida conseguiu que o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra fosse responsabilizado pelo crime e indenizasse sua família. Mas a possibilidade de mover processos na área criminal é algo animador para ela “e todos os demais afetados”, já que poderão finalmente penalizar aqueles abusos que levaram tantos cidadãos à morte. "As novas revelações da comissão da verdade estadual, muitas delas contadas pela ministra Eleonora Menicucci, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, ampliaram nossas possibilidades para incriminar os responsáveis”, explica. “Ter essa revisão aprovada será muito positivo, tanto que nem estou acreditando ainda. Estou tomando consciência desta notícia para ver quais vão ser os caminhos”, comenta pelo telefone, sem esconder sua alegria.

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