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IDA E VOLTA

Em busca de Vivian Maier

Um documentário descobre os tesouros desta fotógrafa incansável dedicada a cuidar das crianças

Antonio Muñoz Molina
Cada foto de Vivian Maier mergulha no segredo dela, em vez de dissipá-lo.
Cada foto de Vivian Maier mergulha no segredo dela, em vez de dissipá-lo.CORTESIA DE HOWARD GREENBERG GALLERY (NOVA YORK)

O romance da vida de Vivian Maier está cheio de páginas em branco. Vivian Maier levou seus segredos para o túmulo, mas deixou mais pistas do que ninguém sobre a sua identidade oculta. Deixou mais de cem mil negativos fotográficos tomados ao longo de mais de quarenta anos e nunca os revelou. Deixou filmes em Super 8, fitas gravadas com conversas com estranhos, dezenas de chapéus, pares de sapatos, vestidos, casacos, peças de roupas que só descartava quando estavam muito gastas, mas que não jogava fora nunca; deixou faturas, recibos, passagens de trem, ingressos de cinema, tubos de rolo de filme que continham dentes de leite das crianças que havia cuidado, ou moedas, botões e emblemas com slogans políticos; deixou cartas cuidadosamente armazenadas em seus envelopes originais depois de lidas e cartas nunca abertas; deixou várias câmeras Rolleiflex que havia usado para tirar fotos; deixou sobretudo caixas de papelão e malas cheias de recortes de jornais e jornais inteiros, principalmente exemplares que tiveram na primeira página manchetes de crimes, ou notícias de estupros, sequestros, assassinatos bizarros ou desgraças terríveis.

Revelou apenas alguns negativos. Aposentou-se e deixou quase tudo o que acumulou em depósitos ou garagens de seus patrões

Ela deixou lembranças variadas e contraditórias nas famílias com as quais havia trabalhado como cuidadora de crianças durante cerca de quarenta anos, em Nova York e, especialmente, Chicago. Conformava-se com salários muito baixos, mas em cada casa que trabalhava reivindicava o direito de colocar um cadeado na porta de seu quarto. Parecia não ter família e carecer por completo de outra vida que não fosse à que dedicava ao seu trabalho. Saía sempre com uma câmera fotográfica pendurada no pescoço, que era uma característica da sua presença pessoal tão invariável como seus grandes casacos ou capas, seus chapéus de abas caídas, suas camisas masculinas, suas saias como freira à paisana, seus sapatos pretos e austeros de salto baixo. Todos os proprietários das casas em que viveu e todas as crianças que cuidou sempre a viram com a câmera, mas ninguém nunca demonstrou a menor curiosidade de saber o que fazia com ela.

Vivian tampouco fez, que se saiba, o menor esforço para mostrar o resultado de uma tarefa na qual colocava os cinco sentidos, que preenchia suas horas de caminhadas solitárias pela cidade em seus dias ou tardes livres e que continuava se ocupando inclusive quando levava as crianças para passear. O segredo de Vivian Maier é duplo, porque não se sabe o que a motivava a tirar fotos constantemente, nem qual era a sua formação, mas também não se sabe por que ela escolheu manter em segredo um hobby que estimava tanto e para o qual tinha tanto talento. Nas gavetas de papéis e de todo tipo de materiais de Vivian Maier acumulados ao longo de sua vida, não há um único testemunho, nenhuma carta, nem mesmo uma reflexão, nem um único indício de suas ideias sobre a fotografia.

Ela chegou a revelar apenas alguns negativos, provavelmente devido à falta de dinheiro. Aposentou-se já velha e deixou quase tudo o que tinha em depósitos ou garagens de seus antigos empregadores. Em 2007, um historiador apaixonado, de 27 anos, John Maloof, comprou por acaso caixas de negativos que encontrou em uma dessas feiras de antiguidades com objetos de vidas anônimas, os armazéns aonde vão parar o que não é mais de ninguém, as bibliotecas e coleções de mortos, suas fotos de família e documentos de identidade, suas cartas de amor e os quadros que tinham sobre as prateleiras e os sapatos de verniz rachados e endurecido de crianças que morreram.

Maloof comprou o arquivo porque custava menos de 300 dólares e porque, ao olhar através dos rolos de filme, vislumbrou neles imagens de rua e do cotidiano de Chicago. Aos poucos, ele foi se conscientizando do tesouro que havia encontrado e de sua extensão. Parecia que aquela mulher sobre quem ele não sabia nada e que não tinha registros no Google não havia parado nunca de andar por aí fazendo fotos e preservando tudo o que caía em suas mãos. Cada negativo novo que revelava era um deslumbramento. Vivian Maier era o resumo de toda a grande fotografia americana do século XX e, ao mesmo tempo, tinha um jeito de olhar especialmente dela, uma originalidade sinuosa que escapava de qualquer tentativa de classificação. Juntava o gosto pelo monstruoso cotidiano de Diane Arbus com a atenção cordial aos jogos de rua das crianças de Helen Levitt. Os bêbados jogados nas calçadas, os loucos ambulantes, as vítimas animais ou humanas da crueldade, fazem uma parte tão integral de seu mundo como do de Weegee, mas em Vivian Maier há compaixão, ou ao menos uma observação fascinada, e nunca sarcasmo. Estava igualmente atenta ao extraordinário e ao comum. Olhava com o mesmo assombro equânime o espanto e a beleza.

Da mesma forma que queria guardar cada mínimo detalhe material de sua vida e cada jornal diário, parece que procurava preservar cada imagem, cada rosto, cada fato com o qual cruzava em suas caminhadas. Empurrando carrinhos de bebê e carregando crianças pelas mãos, ela ia até os bairros mais pobres, aos terrenos industriais dos matadouros, e não se importava em abandonar uma avenida brilhante para entrar em um beco, onde podia tirar fotos de latas de lixo e barracos de papelão, onde os sem-teto estavam abrigados. A câmera Rolleiflex lhe permitia passar mais despercebida, já que a posicionava na altura do quadril e não no dos olhos, inclinando-se para ver o visor. Vistas deste ângulo, de baixo para cima, as pessoas adquirem uma presença dominante, e o espetáculo da rua se observa desde o lugar aproximado do olhar de uma criança.

Grande, austeramente vestida, com cara de vigilância e um olhar para dentro de si, um caminhar enérgico, a passos largos e com movimento de braços, de acordo com aqueles que a conheceram, com sua câmera pendurada no ombro e escondido à vista de todos, Vivian Maier encontrava muitas vezes a imagem de uma desconhecida que era ela mesma. Ela se surpreendia, com essa estranheza de quem se vê sem aviso e de repente, ao ver em uma fração de segundo não a cara que imagina que tem, mas a que os outros veem e conhecem, na vitrine de um café, no vidro de uma cabine telefônica, em um espelho que um funcionário de uma loja carregava no ombro, ou em um espelho de banheiro. Fazia fotos de si mesma olhando na objetiva ou simplesmente disparando; retratava sua imagem em uma janela e ao mesmo tempo sua própria sombra. Cada autorretrato de Vivian Maier mergulha no segredo dela, em vez de dissipá-lo. Olha desde tão longe essas fotografias como um fantasma de si mesma que vagueia de maneira incógnita entre os vivos, com a câmera no pescoço.

Finding Vivian Maier, Dirigido por John Maloof e Charlie Siskel.

www.antoniomuñozmolina.es

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