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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

O experimento do século

O Politburo deixou claro que as reformas políticas chinesas serão feitas sob o controle do Partido Comunista. A pergunta é se o país superará os desafios cada vez mais difíceis da modernização contínua

Timothy Garton Ash
RAQUEL MARÍN

Há duas semanas, quando os europeus, ansiosos por aumentarem suas exportações, acolheram o presidente Xi Jinping durante seu percurso imperial pelo continente, quantos estavam conscientes de quão extraordinário é a experiência política que ele está encabeçando em seu próprio país? Xi, para dizê-lo em poucas palavras, está tentando fazer da China uma economia avançada e uma potência tridimensional, aproveitando as energias do capitalismo, do patriotismo e das tradições chinesas, mas tudo isso sob o controle de um Estado que continua sendo fundamentalmente leninista. Porque ele pode até ser um imperador chinês, mas é também um imperador leninista. É a experiência política mais surpreendente e importante em curso no mundo. No século XX ninguém previu isso. E no século XXI seu sucesso ou seu fracasso terá consequências para todos.

Em 1989, enquanto o comunismo cambaleava em Varsóvia, Berlim, Moscou e Pequim, quem poderia prever que 25 anos depois nos dedicaríamos a estudar com ardor de novos sovietólogos os 60 pontos da Decisão da Terceira Plenária do 18º. Congresso do Partido, a fim de entender as propostas da direção para continuar impulsionando a economia chinesa sem perder o controle político do país? Depois do trauma do caso Bo Xilai, Xi atuou com firmeza para fortalecer o poder centralizado do partido e dele próprio. Além de assumir o tradicional comando supremo do Exército, do Estado e do partido com mais rapidez do que seus antecessores, ele criou pelo menos outros quatro comitês centrais de comando, ou “pequenos grupos dirigentes”, dedicados à reforma econômica, à segurança do Estado, à reforma militar e, dado significativo, à internet. “Mais do que Mao!”, exclama um decepcionado reformista do partido.

Acredita-se que sua campanha contra a corrupção esteja prestes a abater Zhou Yongkang, ex-chefe de todo o aparato de segurança estatal e membro da cúpula partidária. Como diz a alegórica propaganda oficial, é preciso derrotar os tigres e também as moscas. Por um lado, pode-se ver nisso uma prova da seriedade na luta contra a corrupção, tão difundida nas mais altas instâncias do Estado-partido. Mas também pode ser mais uma das tradicionais manobras de um novo líder que tenta assegurar o poder sobre as distintas facções partidárias, sejam elas reais ou imaginárias. É uma purificação, mas também uma purga. E, enquanto isso, as contas dos blogueiros mais críticos são apagadas, os dissidentes são encarcerados e rigorosas medidas de segurança são impostas nas províncias descontentes.

Na China há ostentação consumista, mas também orgulho nacional e um otimismo histórico

Sim – dirão vocês –, mas a Pequim de 2014 está a anos-luz da Moscou de 1974, para não falar de 1934! Vocês têm razão, é obvio. Junto a cada resto do passado há um fragmento do futuro. Em Pequim ou Xangai, pode-se passear por deslumbrantes shopping-centers e conhecer gente inteligente e refinada, empresários, jornalistas, pesquisadores e pensadores, que falam com liberdade sobre praticamente tudo. Os executivos e os milionários da internet dominam o jargão californiano. Os grandes empresários procuram na história antiga da China, no confucionismo e no budismo um significado pós-materialista. Há ostentação consumista, interesse por moda e um estilo de vida cosmopolita, mas também orgulho nacional e um sentimento de otimismo histórico. Os alunos mais destacados e ambiciosos se apressam em se filiar ao Partido Comunista, não por convicção igualitária, mas por uma mistura de aspirações pessoais e patriotismo. “O que este país tem de comunista?”, perguntei a um desses jovens. “Bom, ele é governado pelo Partido Comunista”, respondeu. E lhe pareceu uma resposta mais do que suficiente.

Esse mesmo partido reconhece a necessidade de mais intervenção das forças do mercado e anunciou que vai acabar com a burocracia que restringe as pequenas e médias empresas. No entanto, os jornalistas chineses que acompanham o setor continuam duvidando que tais empreendimentos possam competir com as empresas bem conectadas e de propriedade estatal, que continuam sendo dominantes. Li Keqiang, o competente primeiro-ministro do Estado-partido, compreende bem os temíveis desafios econômicos identificados pelos especialistas, tanto chineses quanto estrangeiros: uma dívida cada vez maior, uma bolha imobiliária e uma demanda muito escassa do consumo interno.

Não digo que não haja nada de novo sob o sol (quando se consegue enxergar através da poluição). Pelo contrário, existe um coquetel borbulhante de coisas novas e velhas. O que quero dizer é que não devemos perder de vista o velho em meio ao novo, nem pensar que a linguagem politburocrática da Terceira Plenária seja uma mera formalidade. Em todas as partes, seja na fábrica, no jornal, no campo ou na universidade, o secretário local do partido continua tendo uma voz decisiva. Existem comitês e células do Partido Comunista em todas as empresas privadas, inclusive nas de propriedade estrangeira. Em muitos casos de maneira oficial, embora em outros provavelmente não. (Por exemplo, seria interessante conhecer homem do partido na redação da edição chinesa do Financial Times. Talvez eles pudessem organizar um dos seus almoços com ele...)

O partido aposta nas forças do mercado e reduzirá a burocracia que limita as pequenas e médias empresas

À medida que Xi e seus colegas do comitê permanente do Politburo consolidam seu poder e fixam seu rumo, fica cada vez mais claro que o “amplo aprofundamento” das reformas ocorrerá sob o férreo controle do partido. Já faz anos que muitos amigos meus, chineses e estrangeiros, tanto membros do partido como críticos destacados, procuram a forma de evoluir para uma maior separação entre Estado e partido, um Estado de direito mais autêntico (em vez do mero legalismo de governar mediante normas), mais margem de manobra para as ONGs e um debate público mais aberto. No pacote atual de reformas, resta algum reflexo daquelas esperanças: por exemplo, os tribunais terão que responder a uma autoridade superior do Estado-partido, em vez de serem controlados por personagens e organismos da própria categoria que deveriam vigiar e fiscalizar. Mas não muito mais do que isso. Em uma diretriz partidária que leva o nome maravilhosamente orwelliano de Documento Número 9, enumeram-se sete ideias supostamente subversivas que qualquer bom camarada não deve tolerar. Entre elas estão a democracia constitucional, os valores universais e a sociedade civil.

Dado que os próximos anos serão cruciais para a economia chinesa, chegou o momento de examinar a questão muito seriamente. Já não se trata de perguntar se a reforma política gradual, a transparência crescente, os equilíbrios constitucionais, a liberdade de expressão e o dinamismo da sociedade civil podem ser usados para complementar e reforçar as reformas econômicas. A pergunta agora é: pode um Estado-partido que soube aproveitar como ninguém as energias do capitalismo, do patriotismo e das antigas tradições chinesas superar os desafios, cada vez mais difíceis, da modernização contínua?

E qual é a resposta? Com poucas horas de diferença, falei com dois dos mais veteranos correspondentes estrangeiros na China, duas pessoas muito bem informadas. Seu diagnóstico do problema foi quase idêntico, mas suas previsões eram incrivelmente diferentes. Um acredita que o partido pode conservar as rédeas se souber administrar com habilidade um desenvolvimento dirigido pelo Estado. O outro prevê uma crise econômica, revoltas sociais e agitação política. Em resumo, ninguém faz nem ideia. Mas pelo menos devemos ter clara a pergunta.

Timothy Garton Ash é catedrático de Estudos Europeus na Universidade de Oxford, onde na atualidade dirige o projeto www.freespeechdebate.com, e pesquisador titular da Hoover Institution, da Universidade Stanford. Seu último livro é ‘Os Fatos São Subversivos – Escritos Políticos de Uma Década Sem Nome’ (Companhia das Letras).

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