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As relações desmedidas

Tudo começou com 29 agentes que chegaram em 1997 para ajudar Hugo Chávez Agora milhares de cubanos trabalham e controlam a Administração pública venezuelana

Uma mulher com a bandeira cubana pintada no rosto em frente à embaixada de Cuba na Venezuela.
Uma mulher com a bandeira cubana pintada no rosto em frente à embaixada de Cuba na Venezuela.Juan Barreto (AFP)

Quando o doutor Janoi González aterrissou no aeroporto internacional Simón Bolívar, da Venezuela, se sentiu como se não tivesse saído de Cuba. "Não tinha nenhum venezuelano, a estrutura estava dirigida por cubanos", afirma referindo-se a uma parte da zona sob controle militar conhecida como Rampa 4, de uso oficial exclusivo. O especialista em radiodiagnóstico, natural de Pinar del Río, entrou ao país um meio dia de dezembro de 2012 sem que seus documentos fossem revisados por nenhuma autoridade venezuelana. "Não há controle migratório. Uns servidores públicos cubanos dizem umas palavras de boas-vindas, dizemos vivas a Chávez e à revolução, e carimbam o passaporte". Esse carimbo diz: "Válido só Cuba Venezuela".

Janoi González é um dos milhares de cooperadores enviados por Havana à Venezuela e, como muitos deles, se viu submetido a péssimas condições de trabalho e uma vigilância ainda mais estreita da que sofre normalmente em seu país natal. “Pagavam um lixo: 1.200 bolívares [então 200 euros segundo o câmbio oficial e 50 no mercado negro]”. Carecia de liberdade para ir e vir e vivia aflito. No começo teve que compartilhar com seis pessoas um quarto de 20 metros quadrados em um hotel de Guanare, capital agrícola da Venezuela. Logo, na proximidade de Acarigua, eram “17 em cinco quartos, com só um banheiro”, detalha por telefone dos Estados Unidos, para onde fugiu em 2013.

Os cubanos controlam o sistema de identificação dos venezuelanos, suas carteiras de identidade e passaportes; seus registros mercantis e notas públicas. Sabem que propriedades têm e que transações fazem

Se observamos com atenção o mapa da América, Cuba aparece como uma pequena língua, um farrapo de terra que parece flutuar à deriva. Nada mais longe da realidade. Ancorada em uma velha ditadura comunista, a ilha tem claro onde encontrar os dólares para se manter à tona. Nos últimos 15 anos, essa língua de 108.000 quilômetros quadrados, com uma das economias mais atrasadas, conseguiu saciar seu apetite na Venezuela, um país nove vezes maior, três vezes mais povoado e com enormes recursos; entre eles, as maiores reservas de petróleo do mundo.

Havana recebe diariamente de Caracas mais de 100.000 barris de petróleo em condições preferenciais, que paga com trabalhadores da saúde. Além disso, obtém investimentos diretos, créditos brandos, subsídios e contratos milionários como intermediária de importações venezuelanas de alimento, bens e equipamentos a países terceiros.

Uma médica cubana, cooperante do programa Missão Bairro Adentro, procura a casa de um paciente.
Uma médica cubana, cooperante do programa Missão Bairro Adentro, procura a casa de um paciente.Piet den Blanken

Não é tudo. Nesse caso, a lógica da história segundo a qual os países mais poderosos frequentemente influenciam politicamente a seus vizinhos mais pobres se afogou no Caribe. À parte de uma ajuda estimada em 8,7 bilhões de euros anuais (27 bilhões de reais), Cuba tem um poder sem precedentes sobre o governo da maior potência petrolífera da América do Sul. E outra exceção. Não foi imposto. Os cubanos não tiveram que disparar um tiro. Desde o fim dos anos noventa começaram a cruzar os 1.450 quilômetros que os separam da Venezuela por convite do presidente Hugo Chávez, quem colocou sua segurança, sua saúde e muito mais na mãos de seus camaradas antilhanos.

Milhares de cubanos trabalham hoje na administração pública venezuelana. Na presidência, ministérios e empresas estatais. Como burocratas, médicos, enfermeiras, dentistas, cientistas, professores, profissionais de informática, analistas, técnicos agrícolas, de eletricidade, pedreiros e cooperadores culturais. Também na segurança, inteligência e, inclusive, nas Forças Armadas.

A maioria são, além disso, milicianos. “Temos na Venezuela mais de 30.000 cederristas cubanos dos 8,6 milhões de membros que tem nossa organização”, revelou em 2007 Juan José Rabilero, então chefe dos Comitês de Defesa da Revolução (CDR) cubanos, em um ato público no Estado de Táchira, no oeste da Venezuela. Nada faz pensar que esse número tenha diminuído. Aproximadamente 70% da população cubana forma parte desse sistema de vigilância e delação.

Os cubanos controlam o sistema de identificação dos venezuelanos, suas carteiras de identidade e passaportes; seus registros mercantis e notas públicas. Sabem que propriedades têm e que transações fazem. Também co-dirigem seus portos e têm presença em aeroportos e pontos de controle migratório, onde atuam aos montes. A firma cubana Albert, AS, da Universidade de Ciências Informáticas (UCI), que opera os sistemas de Serviço Administrativo de Identificação, Migração e Estrangeiros (SAIME), tem tanto poder que não permite o acesso de venezuelanos ao último andar da sede central do serviço em Caracas. Também são cubanos os sistemas informáticos da presidência, ministérios, programas sociais, serviços policiais e da petrolífera estatal, PDVSA, mediante a empresa mista Guardián del Alba.

Segundo os últimos números oficiais, em meados de 2012, na Venezuela havia um total de 44.804 cooperadores nas chamadas missões sociais. O general retirado Rivera acha que são 100.000

A venda desses serviços, de discutível qualidade e cujas páginas da internet são de estética castrista, é obra de Ramiro Valdés, segundo vice-presidente do Conselho de Estado cubano, considerado o homem mais próximo de Caracas, depois de Fidel e Raúl Castro, e seu principal assessor em táticas de repressão política, segundo algumas fontes.

Ainda que os cubados frequentemente relacionem-se só o estritamente necessário com a população local devido ao regimento disciplinar que sanciona as “relações desmedidas com nacionais”, sua presença se sente. “Se produz o paradoxo de que os cubanos dependem economicamente de nós e no entanto têm uma influência política sobre nós muito forte”, destaca a historiadora Margarita López Maya, quem simpatizou com o projeto chavista em seus primeiros anos e se separou criticando seu desvio autoritário.

Os cubanos sabem quase tudo sobre os venezuelanos, mas estes desconhecem de verdade quantos cubanos trabalham no país, quanto ganham por seus serviços e os termos dos acordos de importação de seus serviços, mantidos pelo Governo venezuelano em segredo.

Segundo os últimos números oficiais, em meados de 2012, na Venezuela havia um total de 44.804 cooperadores nas chamadas missões sociais. 31.700 na saúde (11.000 médicos, 4.931 enfermeiros, 2.713 dentistas, 1.245 oftalmologistas e 11.544 não especificados), 6.225 em esporte, 1.905 em cultura, 735 em atividades agrícolas, 486 em educativas e 54 em atenção a deficientes. No entanto, se estima que poderia duplicar essa quantidade. Não há dados oficiais sobre os que trabalham no setor elétrico, de construção, informática, em assessoria de segurança ao governo e outras áreas.

Os médicos cubanos são enviados pelo regime de Havana a outros países em caráter de escravidão moderna, são submetidos a muitas horas de trabalho e o pagamento é praticamente mísero" Júlio César Alfonso, da ONG Solidariedade Sem Fronteiras

O general aposentado Antonio Rivero, ex – colaborador de Chávez, assegura que atualmente no país há mais de 100.000 cubanos, entre eles 3.700 funcionários de seu serviço de inteligência, o G2. “Somente em segurança e defesa, estimamos que pode haver umas 5.600 pessoas”. E afirma que há cubanos nas bases militares mais importantes do país. “Na Força Armada há uns 500 militares ativos cubanos que cumprem funções de assessoria em áreas estratégicas: inteligência, armamento, comunicações e engenharia militar. Também na área operacional e no gabinete do Ministro da Defesa, que conta com um assessor cubano permanente com a graduação de general”.

Segundo o oficial, que trabalhou como chefe de telecomunicações da presidência e foi diretor nacional de Proteção Civil, a presença de Havana se remete a 1997, quando 29 agentes cubanos encobertos se estabeleceram em Margarita e em 1998 ajudaram a Chávez na campanha eleitoral com tarefas de inteligência, segurança e informática.

Rivero pediu baixa em 2010 e denunciou frente a Procuradoria e a Assembleia Nacional a ingerência de Cuba nas Forças Armadas com documentos, gravações e quase uma centena de fotografias. Foi acusado então de ultraje ao Exército e de “revelar notícia privada ou secreta em grau de continuidade”. Atualmente está em liberdade condicional.

Decoração do consultório de um médico cubano.
Decoração do consultório de um médico cubano.AFP

“Os militares cubanos começam a chegar depois de 2007. Sua assessoria inclui uma área educativa, de engenharia militar em construção de fortificações e na doutrina, onde muda o conceito de guerra elevado pelo da guerra assimétrica, que implica envolver a população civil em um sistema de defesa”, explica o general.

Frente suas denuncias, Chávez admitiu então uma cooperação menor com o Exército. “[Os cubanos] nos disseram como armazenar as bússolas, como consertar os rádios dos tanques e como se deve armazenar a munição”.

Em 2013, a oposição obteve e divulgou uma gravação em que o apresentador de um programa de televisão no principal canal do Estado, Mario Silva, confirmava a presença de antilhanos nos quartéis. Nela se ouvia: “Ontem tivemos uma reunião de inteligência com os camaradas cubanos, em Fuerte Tiuna”, dizia Silva ao agente cubano Aramís Palacios. Rivero afirma que pelo país passaram e seguem passando militares cubanos de alta hierarquia como o general Leonardo Andollo Valdés, segundo chefe do Estado Maior de Cuba. “Ele é o encarregado de todo o trabalho militar que fazem os cubanos no país em segurança e defesa”, afirma. Andollo e outros oficiais do Grupo de Coordenação e Ligação das Forças Armadas Revolucionárias de Cuba na Venezuela (Gruce) foram fotografados em guarnições militares do país enquanto oficiais venezuelanos compartilhavam com eles informação estratégica.

“Chávez buscou sempre que nossa Força Armada Nacional (FAN) se adequasse à cubana. Era vital para consolidar seu projeto socialista”, sustenta Rivero. Um funcionário da Direção Geral de Contra Inteligência Militar (DGCIM), que não quis ser identificado, indicou que seus passos são seguidos de perto por agentes de Havana.

A Venezuela é o principal sócio comercial da ilha, muito superior à China, Canadá e Espanha. “A economia cubana cresceu a custa da venezuelana durante a crise financeira global. Cuba recebe créditos da Venezuela a taxas de 1% quando, em média, Venezuela se endivida com o resto do mundo a uma taxa de 12% anual. Estamos falando de uma economia que obtém um apoio total de 8,7 bilhões de euros aos ano, 726 milhões de euros por mês”, afirma o economista venezuelano Ángel Garcia Banchs.

As bandeiras de Cuba e Venezuela no balneário venezuelano de Camurí Chico em 2011.
As bandeiras de Cuba e Venezuela no balneário venezuelano de Camurí Chico em 2011.Harold Escalona (Efe)

Nada mais em matéria petrolífera, agrega, “o subsídio está por ordem dos 3,6 bilhões de euros anuais, em razão de mais de 100.000 barris diários”.

Se trata de um velho sonho acariciado por Fidel Castro desde os anos sessenta, quando deu treinamento, dinheiro e homens à guerrilha venezuelana. Agora, como antes com a União Soviética, Cuba encontrou no único petro-estado da América Latina sua galinha dos ovos de ouro.

Em troca, se desconhecem os benefícios econômicos que a Venezuela obtém de sua aliança com a ilha, que paga a fatura petrolífera com serviços profissionais e técnicos supervalorizados. Cuba exporta seus trabalhadores a um preço muito superior do que os paga, em uma vitoriosa modalidade de exportação de mão de obra e penetração ideológica.

Em 2010, a Venezuela pagou 3,95 bilhões de euros em serviços profissionais, de acordo com um relatório do economista cubano Carmelo Mesa-Lago, professor da Universidade de Pittsburgo, “uma média de quase 100.000 euros anuais por profissional, 27 vezes o salário médio de um médico venezuelano”. É dizer, 8.225 euros mensais por colaborador.

Em 2011, a Venezuela pagou ainda mais: 9.745 euros mensais por cada colaborador de saúde, segundo se evidencia do Acordo de Compensação de Dívidas subscrito entre a petrolífera estatal PDVSA e o Banco Nacional de Cuba. O documento precisou que a fatura da Missão Médica Cubana pelos serviços prestados no últimos trimestre desse ano somou mais de 925 milhões de euros. Mas só uma ínfima parte chega aos bolsos dos trabalhadores enviados pelo Governo cubano. Segundo Solidariedade Sem Fronteiras, ONG de Miami que no último um ano e meio assistiu mais de 3.000 colaboradores que fugiram deste país sul-americano, cada médico recebe em torno de 180 euros mensais.

Cuba recebe po cada cooperante que envia mais de 24.000 reais por mês. O trabalhador recebe 620 reais.

Um colaborador de uma das missões em Caracas, que pede anonimato para evitar represálias, assegura que atualmente o Governo venezuelano lhe dá uma bolsa de 3.000 bolívares ao mês (180 na taxa oficial e 26 no mercado negro) e o Governo cubano deposita em uma conta na ilha 225 pesos cubanos convertíveis (CUC), equivalentes a 225 dólares (163 euros). A margem de lucro para o Governo dos Castro neste envio de trabalhadores se transforma em um negócio redondo e é considerado por Mesa Lartgo como um “subsídio encoberto”. No caso dos técnicos de saúde, a quem Cuba para ao mês 125 CUC (90 euros), a margem de lucro é ainda maior.

“Os médicos cubanos são enviados pelo regime de Havana a outros países em caráter de escravidão moderna, são submetidos a muitas horas de trabalho e o pagamento é praticamente misero enquanto a ditadura cubana recebe milhares de dólares por cada profissional’, assegura Júlio César Alfonso, da ONG Solidariedade Sem Fronteiras.

Os funcionários que dirigem aos colaboradores na Venezuela são de alto nível. O chefe do Escritório das Missões Sociais Cubanas na Venezuela, Vicor Gaute López, ocupa o 16º lugar no Comitê Central do Partido Comunista Cubano, integrado por 118 membros. O embaixador cubano na Venezuela, Rogélio Diaz Polanco, é o último dessa lista.

Havana também vende educação. Segundo dados oficiais, 14.000 médicos venezuelanos se formaram e atualmente formam 19.000 mais. Ainda que se trate de uma relação economicamente desigual, o Governo venezuelano se comporta como se estivesse em dívida com Cuba. Em palavras de Janoi González, “quem paga manda, exceto na Venezuela”. Mas o chavismo nunca teve expectativas de obter benefícios comerciais, sim políticos. E nesse terreno, até agora os Castro serviram a seus propósitos de manter um poder hegemônico e bloquear a oposição.

O próprio Chávez admitiu em uma ocasião que se não houvesse sido por Fidel e sua ideia de lançar as primeiras missões sociais, que desencalharam sua popularidade, haveria perdido o plebiscito de 2004 que o manteve no poder.

Os ex-presidentes Fidel Castro e Hugo Chávez em 2001 em uma canoa no leste da Venezuela.
Os ex-presidentes Fidel Castro e Hugo Chávez em 2001 em uma canoa no leste da Venezuela.Egilda Gómez (AP)

A historiadora López Maya adverte a insólita situação de dependência. “Sem a ajuda dos Governos venezuelanos, possivelmente já haveria colapsado a economia cubana, e no entanto existe uma situação de subordinação a políticas cubanas por experiência que têm no socialismo, pela admiração que o professam e pela desconfiança deste Governo a seus profissionais e a seus quadros preparados para o exercício do poder”. Nenhum outro país havia tido tanto poder na Venezuela desde a época da colônia. Nem sequer os Estados Unidos, em seu momento de maior ingerência na região, chegou a tanto a pesar de que teve um escritório militar dentro de Fuerte Tiuna até 2002.

López Maya recorda a influência das transnacionais petrolíferas nas primeiras décadas do século XX e a do setor militar norte-americano em todos os exércitos da América latina, incluindo o da Venezuela, durante a guerra fria. Mas então, diz, “havia uma subordinação econômica e agora com Cuba há uma subordinação em termos de socialismo”

Pelo momento, a dependência está garantida. O presidente Nicolás Maduro, fiel admirador dos Castro desde sua passagem pela Escola de Formação Política de Havana em meados dos anos oitenta, parece precisar deles ainda mais que Cháves para assegurar-se no controle político dos seus e de toda sociedade venezuelana. A qualquer preço.

Proibido ter amigos venezuelanos

C.Marcano

“Querem te punir por qualquer coisa. Não podemos ir ao cinema, nem a um shopping, nem à praia. Se uma paciente te convida, não pode aceitar”. Lisandra Santos, médica, de 28 anos, trabalhou entre 2009 e 2013 como especialista em endoscopia para a Missão Médica Cubana na Venezuela. No ano passado pediu refúgio nos Estados Unidos.

Sua eloquência contrasta com a parcimônia dos cubanos na Venezuela, que não falam de sua experiência ou o fazem como se as paredes ouvissem. Nas suas pupilas manifesta-se uma centelha de temor a cada pergunta, cada palavra, que poderia comprometê-los. “Não podemos nos relacionar com vocês [os venezuelanos] mais do que pelo trabalho. Sabe como chamam isso, se vai, por exemplo, na casa de alguém, se faz amizade? Relações desmedidas com nacionais”, conta um técnico alocado em um centro de diagnóstico integral (CDI) que pede para não revelar seu nome. O homem, de 36 anos, recusa um convite para jantar porque também é proibido sair depois das seis da tarde. “Supostamente é pela insegurança, puro controle”.

O médico Janoi González, refugiado nos Estados Unidos desde 2013, assegura que são espiados constantemente. “Em cada missão há uma pessoa que é chamada de jurídico. Todo mundo sabe que o jurídico é um agente de segurança do Estado, que controla tudo, que acusa, que tem direito de revistar seus documentos privados, seu telefone, tudo”. As falhas são punidas com penas que vão desde repressões e a confiscação de uma porcentagem de sua exíguo salário em Cuba até a expulsão da missão e o retorno imediato à ilha, segundo o regulamento de disciplina.

“Na missão, se passa necessidade. Pagavam-nos muito pouco. Quando cheguei em 2009 recebia 500 bolívares mensais (261 reais na cotação oficial) e deixei a missão em 2013 ganhando 1.500 (389 reais). Comida, transporte, telefone... nós mesmos tínhamos que pagar. Eu gastava 500 bolívares e não comprava nada”, recorda Lisandra, em entrevista telefônica de Miami.

Esse pagamento mensal na moeda local, como explica um técnico que trabalha no oriente do país, “não é um salário, mas uma remuneração que não sustenta pelo alto custo de vida, pela inflação”(56% em 2013). Atualmente subiu para 3.000 bolívares (menos de 26 euros [80 reais] no mercado negro, o único no qual podiam trocar). O subsidio é custeado pela Venezuela, além do que paga por pessoa (mais de 9.400 euros [24,247 reais] mensais).

Na ilha, o Governo cubano deposita para eles um salário mensal – entre 125 e 225 pesos convertíveis cubanos (CUC), a mesma quantidade em dólares no câmbio atual [283 e 509 reais], dependendo da especialidade – que só podem retirar no seu regresso, de férias ou definitivo, “com avaliação satisfatória”.

Mesmo assim, é mais do que ganhariam na ilha. “A gente vive com muito medo de que acabem com a missão porque como é um dinheirinho... eu como médica recém-graduada ganhava em Cuba 16 dólares [36 reais], e minha mãe, que também é médica, 25 dólares [57 reais]”, compara Lisandra.

O alojamento na Venezuela é uma verdadeira loteria. Muito vivem em lugares de alta periculosidade, ou apertados em espaços pequenos. Lisandra dormiu 15 dias em uma cama improvisada com tábuas em um corpo de bombeiros de Aroa (Yaracuy), até que, graças a uma prima, conseguiu um translado para Caracas, no principal quartel militar do país. “Vivíamos quatro mulheres em um quartinho com dois beliches, um banheiro e uma salinha. Também havia casas de 16 pessoas”.

Se abandonam a missão e pedem refúgio nos EUA, como centenas fizeram, perdem o dinheiro depositado na ilha e não podem voltar para Cuba em oito anos.

"Desde 2006, cerca de 8.000 garotos chegaram aos Estados Unidos, a grande maioria vem da Venezuela. Somente entre o final de 2012 e 2013 saíram de lá cerca de 3.000 desertores", assegura Julio César Alfonso, diretor da ONG norte-americana Solidariedade Sem Fronteiras (SSF). Esse ano, Washington aprovou o programa Cuban Medical Parole, que permite aos trabalhadores cubanos recrutados pelo Governo cubano para trabalhar ou estudar em um terceiro país solicitar um visto humanitário. Médicos, enfermeiros, paramédicos, fisioterapeutas, técnicos de laboratório e treinadores esportivos podem optar.

Ficar na Venezuela é uma opção difícil para os que não obtêm o visto dos EUA ou quem, apesar das restrições, se envolveu em namoros clandestinos e tem parceiros venezuelanos. Não apenas enfrentam a pressão dos Governos cubano e venezuelano- até um mês atrás era impossível para eles serem legalizados-, mas lutam para conseguir emprego.

Um técnico casado com uma venezuelana relata as represálias que sofrem os que abandonam a missão. “O Governo cubano, além de roubar o dinheiro que temos no banco, ganhado com sacrifício, ainda nos proíbe de entrar em território cubano sem se importar se um familiar fica doente ou morre”. E acrescenta, “não podemos exercer nossas profissões porque não revalidamos o título”.

Lisandra, ainda que também tenha se apaixonado por um venezuelano, foi para os EUA. Como a maioria, foi pela fronteira com a Colômbia, ante o temor de ser detida no aeroporto. “Se descobrem algo, te colocam em um avião e te mandam para Cuba”. Já em Bogotá, as autoridades migratórias a deportaram para os EUA. Em Caracas temia por sua vida. “Na Venezuela me senti quase pior que em Cuba, porque para mim é um regime muito similar, mas com insegurança. Atacaram-me com pistola na rua, no metro... Já imaginou? Um sistema repressor com insegurança?”, pergunta Lisandra.

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