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A vida artificial já está aqui

A montagem do DNA permite fabricar uma levedura na qual parte do genoma é sintética O avanço permitirá conseguir melhores antibióticos e biocombustíveis

Javier Sampedro
Jeff Boeke com o cultivo de leveduras sintéticas.
Jeff Boeke com o cultivo de leveduras sintéticas.nyu / science

Cientistas de várias universidades norte-americanas e europeias alcançaram “o monte Everest da biologia sintética”, como dizem os editores da Science: o primeiro cromossomo eucariótico fabricado em laboratório. Trata-se de um cromossomo de levedura, o fungo usado na fabricação de cerveja, pão, biocombustível e em metade das pesquisas sobre organismos eucariontes, como nós. A capacidade de introduzir um cromossomo sintético nesse organismo permitirá melhorar todos os itens anteriores: fabricar biocombustíveis mais sustentáveis para o ambiente ou desenvolver novos antibióticos, além de todo um novo continente de pesquisa sobre a pergunta do milhão: como construir o genoma inteiro de um organismo superior. A reconstrução de um neandertal, por exemplo, seria impossível sem esse passo essencial.

A biologia sintética é uma disciplina emergente, que trata não de modificar organismos, mas sim de desenhá-los a partir de princípios básicos. Nos últimos cinco anos, foram obtidos avanços espetaculares, como a síntese artificial do genoma completo de uma bactéria e de vários vírus. Mas esta é a primeira vez que se consegue fabricar um cromossomo completo e funcional de um organismo superior, ou eucarionte (ou célula boa, em grego, aquela que forma os humanos). O consórcio liderado por Jef Boeke, diretor do Instituto de Genética de Sistemas da Universidade de Nova York, apresenta seu revolucionário resultado na revista Science.

“Nossa pesquisa move o ponteiro da biologia sintética da teoria para a realidade”, diz Boeke, um dos pioneiros dessa área. “Esse trabalho representa o maior passo dado até agora no esforço internacional para construir o genoma completo de uma levedura sintética.”

Boeke iniciou esse projeto há sete anos em outra universidade, a Johns Hopkins, em Baltimore, recrutando 60 estudantes universitários em um projeto chamado Build a Genome (“construa um genoma”). As técnicas para sintetizar o DNA melhoraram muito na última década, mas costumam produzir pedaços sequenciados bastante curtos, com não muito mais do que 100 ou 200 letras (tgaagcct…). Os estudantes se ocuparam de reunir tais sequências sintéticas em pedaços cada vez maiores. O cromossomo final mede perto de 300.000 letras.

Que um marco científico se refira à levedura (Saccharomyces cerevisiae), um fungo unicelular que os antigos egípcios já usavam para fazer a cerveja, parece ser um bom paradoxo ou uma piada ruim, mas não é assim. A divisão fundamental entre todos os seres vivos da Terra não é a que existe entre plantas e animais, nem entre micro-organismos e espécies grandes ou macroscópicas: é entre procariontes (bactérias e arqueias) e eucariontes (todos os outros, inclusive nós).

E o importante da levedura é que, por mais que seja um organismo unicelular, recai no nosso lado da barreira. Não é exagerado dizer que a maior parte do que sabemos sobre a biologia humana se deve à pesquisa desse conhecido fungo de aparência modesta. A levedura tem 6.000 genes, sendo que compartilha um terço deles com o ser humano, apesar do 1 bilhão de anos de evolução que nos separam.

Os cromossomos são os pacotes em que se divide o genoma dos organismos superiores, ou eucariontes. São muito mais do que uma parte do DNA: estão empacotados em complexas arquiteturas formadas por centenas de proteínas que interagem com o material genético, como as histonas. São dotados de um centrômero, o maquinário especializado em distribuir uma cópia do genoma para cada célula filha em cada ciclo da divisão celular; e seus extremos estão protegidos por sistemas singulares, os telômeros, que garantem a integridade da informação genética em cada ciclo de replicação. Por isso o novo feito científico vai muito além da síntese do genoma de uma bactéria, algo que já se havia obtido anteriormente.

Os humanos têm o genoma dividido em 23 cromossomos (ou pares de cromossomos); a levedura distribui seu material em 16, e os cientistas se centraram no menor deles, o de número 3. Extraíram o cromossomo 3 natural do fungo e o substituíram por sua versão sintética, chamada synIII, que cobre as funções do seu homólogo natural, apesar de ter sido bastante alterado com todo tipo de elemento artificial concebido para facilitar sua manipulação no futuro imediato.

A fabricação de antibióticos é atualmente obra de micro-organismos

Que o cromossomo sintético funcione em seu ambiente natural, uma célula viva de levedura, é o verdadeiro marco do trabalho, segundo os pesquisadores. “Mostramos”, diz Boeke, “que as células de levedura que levam o cromossomo sintético são notavelmente normais; comportam-se de forma quase idêntica às leveduras naturais, exceto que agora possuem novas capacidades e podem fazer coisas que suas versões silvestres não conseguem fazer”.

A versão natural do cromossomo 3 do Saccharomyces cerevisiae tem 316.667 bases (as letras do DNA: a, g, t, c). A versão sintética é um pouco mais curta, com 273.871 bases, como consequência das mais de 500 alterações que os cientistas introduziram nele. Entre essas modificações se encontra a eliminação de muitos trechos de DNA repetitivo, que não têm função alguma, por estarem situados entre um gene e outro (sequências intergênicas) ou dentro dos próprios genes (íntrons).

Também eliminaram os transpósons, ou genes que saltam de uma posição para outra no genoma de todos os organismos eucariontes. O cromossomo artificial synIII também porta muitos trechos de DNA acrescidos pelos pesquisadores. O número total de mudanças de um ou outro tipo se aproxima de 50.000, e mesmo assim o cromossomo sintético continua sendo funcional.

Apesar das suas evidentes implicações para a biologia fundamental – é possível construir o genoma de um organismo superior, inclusive o ser humano, a partir de compostos químicos tirados de um pote na estante? –, o projeto tem objetivos sobretudo práticos. E não só em áreas industriais, como a fabricação de pão e bebidas, nas quais esse organismo sempre foi utilizado.

Já houve vírus e bactérias de laboratório

Uma das aplicações ressaltadas pelos autores é a melhora na produção de remédios como a artemisina, para a malária, ou a vacina contra a hepatite B. Como a maioria dos antibióticos provém de fungos, e a levedura é um deles, também não é descabido prever avanços na concepção e produção desses medicamentos.

Mais em longo prazo, as leveduras sintéticas podem facilitar a síntese de medicamentos contra o câncer, tais quais o Taxol, cuja síntese, por ser muito complicada e envolver muitos genes, gera obstáculos para as tecnologias convencionais. Numa área industrial muito diversa, essa tecnologia, conforme esperam seus autores, servirá para desenvolver biocombustíveis mais eficazes que os atuais, entre eles álcoois como o butanol, e também diesel de origem biológica.

E, obviamente, o synIII é só o primeiro dos 16 cromossomos da levedura que os pesquisadores conseguem sintetizar. As tentativas de repetir a façanha com os outros 15 cromossomos já estão em projeto, sendo incluídas em um programa internacional chamado SC 2.0, com a participação de cientistas dos Estados Unidos, China, Austrália, Cingapura e Reino Unido. No nome do projeto, SC alude a Saccharomyces cerevisiae, o nome científico da levedura da cerveja, e o 2.0 busca enfatizar até que ponto os seres vivos estão prestes a se parecerem com qualquer outro desenvolvimento tecnológico. O objetivo é construir um genoma completo de levedura, ou o primeiro organismo complexo sintetizado no tubo de ensaio.

Voltando os olhos mais para o futuro, cabe especular sobre a ressurreição de espécies extintas, como o mamute ou o neandertal, cujos genomas já foram sequenciados a partir de seus restos fósseis. Se esses projetos chegarem a ser iniciados algum dia, terão de se basear em uma técnica similar à que Boeke e seus colegas acabam de desenvolver para esse fungo enganosamente simples, mas que tão útil tem sido para a espécie humana desde os primórdios do neolítico.

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