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A sorte e o epitáfio de Adolfo Suárez

Os que o conheceram admiravam sua paixão pela política e sua ambição de poder

Adolfo Suárez no Congresso em uma foto sem data.
Adolfo Suárez no Congresso em uma foto sem data.Miguel Povedano (Presidência do Governo)

Os que o conheceram, admiravam nele sua paixão pela política e sua ambição de poder e não faltavam jornalistas que falavam de sua irresistível simpatia e seu contagioso entusiasmo. Outros falavam da sua juventude católica, da sua notória aversão aos livros, da sua passagem por níveis secundários do Movimento, da postura quase filial de estar a serviço dessa espécie de segundo pai que foi para ele Herrero Tejedor, e das boas relações que soube fazer com o almirante Carrero, com Lópeó Rodó e com o Príncipe da Espanha. Mas ninguém nunca chegou a saber em que consistia seu programa político, se é que tinha algum, a não ser que pregava uma evolução ordenada do regime em direção a uma abertura que permitisse que saíssem a campo associações perfeitamente de acordo com o que ele considerava a autêntica Constituição que, claro, andava precisando de certas reformas sempre que fossem feitas a partir do poder.

Uma bagagem muito leve para a árdua tarefa posta pela premente pergunta que os políticos espanhóis e teóricos estrangeiros repetiam fazia anos: Depois de Franco, o que virá? De fato, Adolfo Suárez não se preocupava tanto com a resposta como com o lugar que ele ocuparia no quadro político do regime quando se produzisse o chamado fato biológico. E não resta dúvida de que lançou mão de todas as suas artes de sedução, que não eram poucas, para que o acontecimento o pegasse sentado na mesa do conselho de ministros. Só que, desde 1969, os caminhos para chegar a tão elevada posição haviam se complicado por causa da desagregação que acabou convertendo a ditadura num conglomerado de personalidades cada qual rodeada pelo que Mas Weber chamava séquito e Manuel Azaña, de seguidores. Quer se olhe para as pessoas do bunker, para as novas gerações do Movimento, para o corpo de altos funcionários, os tecnocratas da Opus Dei, ou a democracia cristã, todos se encontravam divididos entre si e enfrentados uns contra os outros, levando cada um a contabilidade das ofensas mutuamente infringidas nas longas esperas pelos corredores do poder.

Suárez sofreu as consequências dessa atomização grupuscular das forças do regime quando, pela morte do seu patrão e guia, se viu lançado da vice-secretaria geral do Movimento – pista de voo para o governo – para as margens externas ao sistema. E então, com 42 anos completos, tomou a decisão de que, jogando seu presente numa carta, se converteu em promessa de futuro: fortalecer e expandir uma das poucas associações acolhidas ao novo registro do Movimento, a União do Povo Espanhol. Ninguém, nem as pessoas do regime, davam um tostão furado pelas associações, mas Suárez permitiu à sua, da qual logo se tornaria presidente, subir à categoria de personalidade política.

A mistura de sorte e audácia que acompanha os vencedores multiplicou seu capital político cem por um depois do fracasso de Arias

E assim, quando chegou a hora de Franco e o depois tornou-se agora, o mais natural foi que se cumprisse afinal seu sonho e ele se visse alçado, com outras personalidades mais bem estabelecidas e mais grandiloquentes, a um posto no conselho de ministros. Poderia tê-lo levado à ruina, já que o ministério era a secretaria geral do Movimento, mas a mistura de sorte e audácia que acompanha os vencedores multiplicou seu capital político cem por um depois do fracasso de Arias e o simultâneo naufrágio das mais proeminentes personalidades reformistas do regime, encabeçado pelo dos presidentes Fraga e Areilza, sempre a espreita, aspirantes a edificar sobre seus ombros uma democracia à espanhola.

De forma que, quando foi chamado do alto, Suárez tinha claro que o tempo e a oportunidade das personalidades havia terminado; que o que a nova conjuntura exigia era a formação de uma equipe de governo em torno de um presidente sem séquito nem seguidores. O espalhafato de Fraga, Areilza e outros Lópeces facilitaram as coisas. Era preciso seguir o caminho italiano, embora com outro nome. E, de fato, Suárez se dispôs a criar uma nova força política que desempenhasse na Espanha o papel que a democracia cristã teve na Itália depois da derrota do fascismo: facilitar aos comunistas, a partir do poder, a ocupação de um espaço próprio que dividisse a esquerda em dois partidos com força eleitoral semelhante, destinados, portanto, a uma perene oposição; e, ao mesmo tempo, idealizar um sistema eleitoral com o objetivo, não de criar um sistema bipartidário, mas de garantir ao seu partido uma hegemonia de décadas, também à moda italiana. Por isso ele incorporou ao seu primeiro governo destacados membros da democracia cristã em posições chave, ao lado daqueles que haviam pendurado a camisa azul no fundo do armário.

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Se o marco em que havia de ocorrer a transição de uma política de personalidades para uma política de partidos esteve mais ou menos claro desde o princípio – daí o primeiro decreto-lei de anistia que legalizou na prática os partidos de oposição – não estava claro, entretanto, o ritmo e o conteúdo das iniciativas necessárias para celebrar eleições gerais que devolvessem a soberania ao povo espanhol. E foi nesse ponto que brilhou o gênio político de Suárez ao convocar eleições por meio de uma lei que sendo para a reforma não era de reforma, já que não reformava nada: uma fraude de lei, como haviam imaginado o enigmático Fernandez Miranda e o mais barroco Carlos Ollero. No fim, era isso o que exigia a oposição: a convocatória de eleições que abrissem caminho para um processo constituinte: e isso foi o que decidiu o governo sem negociação prévia e sem necessidade de consenso algum.

Como resultado desse golpe audaz, Suárez liquidava sem maiores obstáculos as instituições políticas da ditadura -- Cortes e o Movimento – ,fechava o Tribunal da Ordem Pública e licenciava a burocracia sindical. Faltava ver até onde as Forças Armadas permitiram abrir o terreno do jogo para a oposição. E mais uma vez nesse ponto a sorte e a audácia se aliaram na decisão de legalizar o Partido Comunista tirando de um só golpe dos militares, também divididos, seu tácito direito de veto sobre o alcance das políticas adotadas pelo governo. Uma vez conseguido isso, o resto foi costurar e cantar a libertação de um punhado de presos da ETA recorrendo à arcaica figura da alienação. As eleições puderam se celebrar sem que nada turvasse a ensolarada placidez daquele inesquecível dia de junho.

Mas o passado às vezes prega peças. É curioso que Suárez, que se fez político no sentido mais nobre do termo, ou seja, alguém que vivia para a política e não da política no marco de um sistema de personalidades-cum-séquito, não fosse capaz de coroar seu trabalho criando um verdadeiro partido político. Se houve um erro Suárez, sua semente foi plantada no dia em que, depois de ganhar sem maioria as primeiras eleições, decidiu formar o governo repartindo esferas de poder entre os líderes dos diversos grupos coligados à UCD, chamados, não sem razão, de barões. Certo, a união eleitoral se transformou formalmente em partido político, mas a forma não modificou o fundo: UCD permaneceu como uma cova de varões que compartilhavam uma característica comum, seu desprezo por aquele líder que se havia empoleirado no poder como num passe de mágica. Sem leitura, sem bagagem intelectual, sem idiomas, sem pedigree nenhum, tudo o que antes foi motivo de admiração agora se convertia em razão de desprezo.

E foi, no final, a revanche da política de personalidades transformada em desavenças de barões que acabou por provocar um buraco na linha de flutuação do próprio partido que o havia levado ao governo. Suárez nunca voltou a ser o que havia sido desde aquele junho de 1976 até, ampliando muito, março de 1979. Depois, a sorte se converteu em perdição, os tapinhas nas costas em socos no estômago, os parabéns em desdém. Subiu na política da mão de personalidades e morreu na política vítima de barões. Que descanse em paz.

Santos Juliá é professor emérito da UNED

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