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O “assim se fez” de Pablo Picasso

A relação do artista com o estúdio e as modelos inspira uma excepcional mostra na Mapfre. A exposição reúne 170 peças, muitas inéditas na Espanha

Iker Seisdedos
Montagem da exposição ‘Picasso no estúdio’.
Montagem da exposição ‘Picasso no estúdio’.LUIS SEVILLANO

Os pincéis ressecados, rachados e a paleta do artista, cheia de manchas da lenda, despedem o visitante da mostra Picasso na oficina (de 12 de fevereiro a 11 de maio na Fundação Mapfre de Madri). Erguem-se num canto, em precário equilíbrio, real e figurado, na última sala do percurso, tal qual os deixou o pintor, garantem os herdeiros. Embora aqui tenham vindo para servir a outras finalidades: nada menos que provar que o que se acabou de ver aconteceu de verdade e que a extraordinária peripécia de obsessões de Picasso foi algo mais de uma construção mitológico do heroico século XX convenientemente embrulhado para ser consumido no século XXI.

Do percurso pelas salas da fundação na Rua de Recoletos, que abrigam 80 telas, 60 desenhos e gravuras, 20 fotografias e mais de uma dezena de paletas, se depreende que nosso homem não só labutou para encarnar com enorme sucesso o ideal do artista para o mundo e a posteridade; também se dedicou a fundo em contar essa história de si mesmo. Como prova definitiva valeria o fato de que o tema do pintor e a modelo “irrompe com força na sua obra a partir de 1927 e se mantém até o final”, como explica a curadora Maite Ocaña que, entre as infinitas aproximações possíveis ao inesgotável artista, optou por centrar seu foco nos “espaços do trabalho criativo, que além do mais oferecem uma representação fiel e diária da sua cotidianidade”. Dito de outra forma: esta é uma exposição sobre as manias do gênio em seu trabalho, sim, mas que, acima de tudo, nos fala da sua forma de ser e estar na intimidade criativa do estúdio.

O que no caso de Picasso equivale a dizer: o lugar supremo da sua existência. Ou, em suas próprias palavras, sua “paisagem interior”. Nas sete décadas atravessadas pela exposição (desde aquele 1918 plenamente cubista até um de seus últimos autorretratos, com calça de listras horizontais, que só se havia visto em Avignon, na última das suas exposições organizadas em vida), tudo nessa história gira em torno de lugares de ressonâncias míticas para o amante da arte, como o número 23 bis da Rue La Boétie, os châteaus de Boisgeloup e Vauvenargues (aos pés da cezanniana montanha Sainte Victoire), o espaçoso Grand-Augustins, onde viveu com Dora Maar e onde pintou Guernica, os vilarejos provençais de La Galloise e La Californie, e o último refúgio de Notre-Dame-de-Vie, em Mougins.

Provas da vida de todas essas clausuras – a maior parte delas nunca vistas na Espanha – chegaram à fundação Mapfre a partir de museus e coleções particulares de todo o mundo, embora não (ai!) do museu de Teerã, como estava previsto a princípio: uma confusão com os resseguros, explica Pablo Jiménez Burillo, diretor geral do Instituto de Cultura da Mapfre, impediu na última hora a importação temporária dos misteriosos picassos de Farah Diba. Em compensação, foi possível, sim, o empréstimo do Autorretrato com paleta (1906), obra-prima do museu da Filadélfia que serve como uma recepção em grande estilo e que pode ser lido como um prólogo desgarrado do novelo temporal que vem em seguida.

A mostra na Fundação Mapfre, em Madri.
A mostra na Fundação Mapfre, em Madri.LUIS SEVILLANO

A mostra se divide em duas partes, que vem a definir duas figuras femininas fundamentais: Marie-Thérèse Walter (no andar de baixo) e Jacqueline Roque (a quem se calcula que Picasso representou umas 440 vezes, em cima). Antes da primeira, a modelo de O Pintor e a modelo, todas as atenções do estúdio estavam voltadas, como corresponde ao credo cubista, para naturezas mortas, pipas, vasos, máscaras e, claro, violões. Como crente fiel do ideal burguês, Picasso sempre soube se cercar de coisas belas e as colocou bem perto, ao alcance da mão: mulheres, galeristas, comerciantes, móveis, vistas do Mediterrâneo e fotógrafos. Assim o demonstra a decisão da curadora de incluir uma sala circular com imagens em preto e branco daqueles dias felizes.

ampliar foto Jacqueline é autora de algumas delas. E sua inclusão parece justificada. Com ela, deixa-se o ensimesmamento do artista com o universo de seu local de trabalho e chega-se à obsessão por captar a atmosfera e as relações do estúdio, que vem de longe, como sugere uma versão de As menina,s que preside uma das salas, e a inclusão da Suite Vollard, longinquamente inspirada naquele pintor de Balzac empenhado em capturar a vida através da beleza feminina.

O enfrentamento entre o pintor, mais ancião e mais voyeur com o passar do tempo (no final acaba reduzido a uma presença que escapa pela esquina superior direita da tela), e as modelos, cada dia mais jovens e voluptuosas, induz Ocaña, ex-diretora do Museu Nacional de Arte da Catalunha (MNAC) e do Museu Picasso de Barcelona, a fazer uma interessante reflexão sobre “a fugacidade da passagem do tempo”.

Para o espectador (outro voyeur) fica mais uma irremediável sensação de desesperação melancólica.

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