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Coluna
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Q. está morrendo...

Cerca de 150 mil pessoas morrem, em média, por dia no mundo

Q. está morrendo.

Cerca de 150 mil pessoas morrem, em média, por dia no mundo.

No momento em que Q. morrer, ela será apenas um número nas estatísticas, mas para mim desaparecerá alguém de carne e osso, um corpo imerso em recordações. Se morresse um ano antes, não sentiria coisa alguma, pois sequer sabia de sua existência. Agora, no entanto, ela tornou-se parte das minhas memórias, com suas frases epigramáticas e sua invejável altivez na lida com a doença. A visita a seu quarto sombrio e abafado, flutuando na tarde luminosa do verão portoalegrense, despertou lembranças que insisto em manter trancadas no sótão da minha carcaça já bastante cansada.

Minha primeira morte ocorreu quando tinha talvez sete anos. Devia ser novembro, pois ainda sinto o sol queimando minha cabeça. Estávamos brincando, eu e Márcio Rãzinha, apelido que recebeu por gostar de estar sempre à beira de rios, córregos e lagoas pescando, quando nos assustamos com um barulho, seco e breve. Em seguida, alguém passou gritando algo que não entendemos, mas, novidadeiros, corremos na direção da casa de esquina, onde morava uma família operária.

Como nos impediram de entrar, voltamos para a calçada. A janela que dava para a rua era alta, mas, amparando-me em meu amigo, escalei a parede e, de maneira inesperada, me deparei com uma menina, quinze anos soubemos mais tarde, deitada no sofá, a cabeça pendente, sangue pingando de seus cabelos pretos, um revólver caído no chão ensopado de sangue. Assustado, meu torso projetou-se para trás, desabei sobre Márcio e disparei para minha casa, o coração na boca. Nunca soube seu nome, mas agora que o passado se acumula no calendário, creio que talvez seja uma das poucas pessoas que ainda pensam nela, e que sentem sua falta, e que tentam compreender aquele desamparo tão precoce.

Estranhamente, minha segunda morte foi também suicídio, não muito tempo depois. Desta vez, porém, sabia nome e sobrenome do corpo envolto em flores que surgia à minha frente deitado num caixão preto, e até mesmo o motivo de sua mágoa. Era uma amiga de minha mãe, tecelã, que, apaixonada por um homem casado, resolveu dar cabo de tudo ingerindo soda cáustica. Seus lábios roxos destacavam-se no rosto magro e feio, e, mais comedido, pude perceber como a desaparição daquela mulher, ela tinha cerca de trinta anos, não alterava em nada a passagem das nuvens na tarde fria.

Minha terceira morte bisbilhotei entre as tábuas que cercavam um necrotério improvisado. Estávamos explorando o canteiro de obras do novo edifício do Hospital de Cataguases, quando avistei um pedaço de ferro que poderia servir para alguma das minhas reinações. No momento em que me abaixei junto à parede do galpão para recolhê-lo, enxerguei, do lado de dentro, um homem vestido de branco limpando, com um chumaço de algodão, a sujeira e o sangue coagulado que vertera de vários talhos que desenhavam no corpo negro, a cabeça quase separada do tronco. Apavorado, me dei conta de que os homens matavam-se uns aos outros – aquele havia sido atocaiado, por vingança, recebendo inúmeros golpes de foice.

E veio a quarta morte e me pegou desprevenido, porque, até então, a via apenas passeando por quintais alheios. Eu tinha nove anos e estudava há meses o catecismo. Na véspera de minha primeira comunhão, a inspetora da escola abriu a porta da sala de aula e chamou a professora, dona Celeste. Ela assentiu com a cabeça, declinou meu nome e disse para eu pegar minhas coisas. Coloquei o caderno, o lápis e a borracha na pasta, e, me dando ares de importância, caminhei em direção à sala da diretora, onde encontrei, surpreso, meu pai. Ele, respirando fundo, me falou que meu tio, Olavo, o caçula da família, havia sofrido um acidente.

Se nas outras três vezes havia morrido por pessoas que nem conhecia, a perda do meu tio alertava para a minha fragilidade. E eu, que não dormia, preocupado com a bomba atômica, com a nossa precária situação financeira, com as brigas nas casas vizinhas, passei a também temer que a morte pudesse seqüestrar meu pai ou minha mãe, porque, até aquele momento, para mim o óbito estava relacionado com a decrepitude do corpo, exceto, é claro, quando alguém tirava a própria vida. Foi, portanto, sem sobressalto que quando fiz 16 anos acompanhei o enterro da minha avó, Marieta Micheletto, que ultrapassara os oitenta anos, minha quinta morte.

Parei de contar quando inteirei a sexta morte, a de meu irmão, estúpida e inaceitável, aos 26 anos. Daí para a frente morri outras incontáveis vezes, e, em todas, partes de mim foram arrancadas, corroendo meu corpo como a maresia oxida o metal.

Q. está morrendo. Com ela morrerá uma história, singular e intransferível. Com ela, morrerá um pouco de mim também.

Luiz Ruffato é escritor

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