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O assassinato de uma ex-miss altera a pauta política da Venezuela

Maduro convoca todos os governadores, inclusive Capriles, diante da enorme comoção pela morte a tiros de Mónica Spear durante um assalto

Mónica Spear ao vencer o concurso Miss Venezuela, em 2004.
Mónica Spear ao vencer o concurso Miss Venezuela, em 2004.ANDREW ALVAREZ (AFP)

Não só foi pelo nome das vítimas – Mónica Spear, miss Venezuela 2004 e conhecida atriz de novelas, seu ex-marido, o irlandês Thomas Henry Berry, e a filhinha deles, de cinco anos –, mas também pela maneira como o fato aconteceu: na noite do Dia de Reis, depois de o carro deles passar por um buraco na rodovia que liga Puerto Cabello a Valencia, na zona costeira central do país, dois pneus do carro estouraram. Logo depois, um guincho os socorreu. Enquanto erguiam o veículo para trocar os pneus e seguir a viagem, dois bandidos apareceram, aparentemente para roubá-los. Os primeiros dados colhidos pela polícia científica indicam que Spear e sua família se fecharam no veículo, que foi baleado. Segundo a empresária da atriz, ela morreu vítima de um disparo, e seu ex-marido levou três tiros. Ambos morreram. A menina sobreviveu ao ataque com um ferimento na perna.

A ampla divulgação dada à fatídica notícia na manhã desta terça-feira provocou um abalo poucas vezes visto no país. As redes sociais explodiram em indignação e tristeza, tornando a hashtag #MonicaSpear uma tendência nacional. O Governo precisou então modificar a pauta do dia. Ao meio-dia, a emissora estatal Venezuelana de Televisão, que há vários anos erradicou da sua programação qualquer alusão à desenfreada insegurança neste país – a qual no ano passado custou a vida de 24.763 pessoas, segundo estimativas da ONG Observatório Venezuelano da Violência (OVV) –, mostrou ao presidente Nicolás Maduro reunido com um grupo de artistas chavistas ligados ao coletivo Movimento de Artistas pela Vida e a Paz. Um deles, Manuel Sosa, foi o primeiro par romântico nas telas da atriz assassinada. A habitual voz grave do presidente se transformou em um sussurro para narrar detalhes do caso aos presentes, revelando também o enlutado estado de espírito nacional.

Spear desfila na final do Miss Universo 2005, em Bancoque.
Spear desfila na final do Miss Universo 2005, em Bancoque.RUNGROJ YONGRIT (AFP)

Na saída dessa reunião, o porta-voz do coletivo, o ator Roberto Messuti, pediu que não se politizasse um fato trágico. “Não o transformem em um circo político, porque são claramente palpáveis os esforços do Executivo em matéria de segurança”, acrescentou o diretor da polícia científica, José Gregorio Sierralta, ao divulgar os primeiros detalhes do duplo homicídio. Ambos os comentários revelaram a principal crítica feita pelo chavismo no decorrer do dia. Não obstante, todas as declarações dos porta-vozes governistas pareceram ser insuficientes para conter a crise comunicacional desatada. Com genuína dor, as figuras públicas contrárias ao governo não pouparam críticas aos frustrados planos de segurança e salientaram o fracasso do chavismo no combate à criminalidade nos últimos 15 anos. Sobre Spear, ressaltavam não só o trágico destino de sua filha órfã, mas também sua imensa espiritualidade e um apego à sua terra, que muitos vinham pondo em dúvida nos últimos tempos.

A morte também ocorre num momento em que o governo tenta resgatar o turismo interno, mediante um slogan que promove a Venezuela como um destino “chévere” (“legal”, na gíria local), ao mesmo tempo em que quase califica de traidores da pátria os líderes políticos oposicionistas que viajaram de férias para o exterior durante as recentes festas de fim de ano. O coletivo artístico também recriminou o principal responsável pela campanha, o ministro dessa pasta, Andrés Izarra, que minimizou o impacto da insegurança no turismo nacional e estrangeiro. Em 2010, por exemplo, ele zombou das cifras da OVV durante em uma entrevista à rede CNN. Em 2013, a ONG calculou que 79 a cada 100.000 venezuelanos foram assassinados ao longo do ano. O ministro do Interior e Justiça, Miguel Rodríguez Torre, refutou essas informações e assegurou que em 2013 houve uma redução de 17% nos homicídios e 51% nos sequestros, com uma taxa de 39 pessoas mortas violentamente a cada 100.000 habitantes.

Os venezuelanos, entretanto, parecem pouco se importar com a diferença entre os cálculos e, de forma mais geral, com qualquer menção às explicações oferecidas por porta-vozes governistas, que buscam “nos anti-valores gerados pelo capitalismo” a explicação para a violência generalizada no país. Há muita dor e indignação. Maduro pareceu acusar esse sentimento, porque, na metade da tarde da terça-feira, enquanto esperava a chegada de seu homólogo Evo Morales no aeroporto de Maiquetía, decidiu conceder uma segunda declaração aos meios de comunicação estatais, desta vez em tom mais firme do que na primeira fala.

O presidente iniciou sua intervenção revelando que havia conversado com os investigadores da polícia científica na tentativa de encontrar uma explicação para “sanha criminal” com a que a família de Mónica Spear foi crivada de balas. Depois, disse que ajustará os planos de segurança pública e que se reunirá nesta quarta-feira com todos os governadores do país e com os prefeitos de 79 municípios onde a criminalidade é mais crítica. A advertência mais forte ele reservou para o final: “Embora eu tenha estendido a mão aos jovens que estão na antivida, também irei a fundo contra os que quiserem matar homens e mulheres de bem. Falo aos criminosos: que explicação têm para matar? Digo isso com indignação e dor. Eu assumo minha responsabilidade. Quem quiser vir para matar vai encontrar uma mão de ferro. Que ninguém se engane”.

A oposição política tampouco foi indiferente ao duplo homicídio. O líder Henrique Capriles e outros ocupantes de cargos relevantes, como o prefeito metropolitano de Caracas, Antonio Ledezma, expressaram suas condolências. Capriles foi inclusive bem além e escreveu em sua conta do Twitter, durante a manhã, antes do anúncio de Maduro: “Nicolás, eu lhe proponho deixarmos de lado nossas profundas diferenças e nos unirmos contra a insegurança em um só bloco”. Até agora não está confirmado o horário da reunião, mas tudo indica ser mais do que provável um encontro cara a cara entre os principais rivais da política local. Entretanto, Capriles esclareceu ao El País que não recebeu informações sobre essa reunião. “Agora, a respeito do tema da insegurança dos venezuelanos, sempre estarei disposto a falar e trabalhar com quem for. Para mim, é um tema sagrado.”

Spear, nascida em Maracaibo, no Estado de Zulia, em 1984, teve uma passagem curta, mas fulgurante, pela televisão venezuelana. Protagonizou novelas no seu país – Mi Prima Ciela e La Mujer Perfecta – antes de se radicar nos Estados Unidos, em 2011, onde era contratada pelo canal Telemundo. Era apenas uma etapa em sua vida. Tímida, um tanto desorientada, sempre optou por retornar à Venezuela, apesar das ofertas que, segundo seus colegas, tinha em Los Angeles. Para seus admiradores, talvez o que mais doa seja a morte cruel que coube a alguém com temperamento tão otimista.

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